O primeiro-ministro britânico David Cameron durante pronunciamento após referendo decidir que Reino Unido vai abandonar a União Europeia
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Por 51,9% a 48,1%, o eleitorado britânico decidiu ontem num plebiscito histórico que o país deverá sair da União Europeia (UE). As consequências do Brexit ainda deverão ser digeridas pelos próximos dias, meses e anos. Mas que não haja dúvida: serão dramáticas. Elas se desdobram nos planos econômico e político.

Para além do naufrágio da libra esterlina, do choque imediato nos mercados globais – só a City londrina perdeu £ 100 bilhões em horas – e da renúncia do premiê David Cameron (foto), o Brexit terá efeitos profundos no mais bem-sucedido projeto de integração da história da humanidade e na trajetória de globalização progressiva que parecia um dado inevitável da realidade contemporânea.

No plano político, o maior vitorioso nem é o ex-prefeito de Londres Boris Johnson, candidato natural a suceder Cameron. É o chauvinista NIgel Farage, do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip), que transformou o plebiscito numa votação sobre a imigração. Depois da vitória, Farage declarou o “dia da independência” . Afirmou, para escândalo de quem ficou chocado com o assassinato da parlamentar trabalhista e pró-Europa Jo Cox, que a vitória foi conquistada “sem disparar nenhum tiro”.

A saída de Cameron deflagrará uma disputa interna em seu partido, o Conservador, rachado pela questão europeia. Metade, fiel ao livre comércio como motor de crescimento e desenvolvimento. A outra metade, lliderada por Johnson, com medo da livre circulação de pessoas, vista como ameaça ao caráter nacional britânico.

Como nos Estados Unidos de Donald Trump, a direita britânica estará doravante dividida em duas. E a linha que demarcará os polos políticos do país não se dará mais em termos da liberdade econômica ou do tamanho do Estado. A questão política central passa a ser a imigração. E, como decorrência natural, a xenofobia.

Entre 1993 e 2014, a quantidade de estrangeiros vivendo no Reino Unido aumentou de 3,8 milihões para 8,3 miilhões. Desses, 5 milhões não são cidadãos britânicos – e 3 milhões são cidadãos europeus. De acordo com pesquisas, 77% dos britânicos acham que a imigração deve ser reduzida.

Os maiores efeitos econômicos do Brexit se darão no comércio e nas finanças, hoje totalmente integrados à Europa por meio de um complexo conjunto de normas e tratados que precisarão ser desfeitos. A saída provocará ondas de choque em todo o continente, que se estenderão pelos próximos anos. 

Com 13% da população e 15% do Produto Interno Bruto (PIB) da UE, o Reino Unido é o terceiro maior integrante do bloco, para onde envia algo como 45% de suas exportações. Cameron ou o novo premiê britânico terão de invocar imediatamente o artigo 50 do acordo da UE, que dá um prazo de dois anos para a negociação de um tratado comercial com Estados que desejam abandoná-la. As possibilidades aí são variadas e se inspirarão em exemplos como Noruega, Suíça ou Turquia.

A ideia dos defensores do Brexit era alcançar com a UE um acordo comercial semelhante ao da Noruega, que não é parte da UE, mas da Área Econômica Europeia, o mercado comum. Para isso, os noruegueses arcam com praticamente todo o custo de pertencer à UE. Têm de respeitar todas as normas burocráticas determinadas em Bruxelas, mas sem participar de sua elaboração. E pagam à UE algo como 84% do dinheiro enviado pelos britânicos.

É extremamente improvável que os demais países europeus aceitem firmar um acordo generoso com o Reino Unido. Não haverá boa vontade, entre tantos outros motivos, para não encorajar outros países a sair e provocar o esfacelamento do bloco. Será difícil aos britânicos conseguir até mesmo uma união aduaneira, a forma de integração comercial mais simples, hoje almejada, mas ainda não obtida, pela Turquia.

O Reino Unido teve uma força política determinante para no acesso do bloco aos mercados anglo-saxões. Ficará fora do acordo que a UE negocia com os Estados Unidos e mesmo do tratado de livre comércio recém-firmado com o Canadá, depois de sete anos de negociações. Mas a saída não deixará França e Alemanha numa posição necessariamente mais fraca politicamente. Ao contrário, o eixo franco-germânico poderá investir agora em seu projeto de integração mais profunda, a que os britânicos resistiam.

Apesar do baque imediato e da reação de vários movimentos que defendem a saída de outros países europeus, em especial França, é improvável o esfacelamento da UE. Mais provável é o racha entre os próprios britânicos. A Escócia, ontem majoritariamente favorável à permanência na UE, poderá reconsiderar sua decisão de permanecer no Reino Unido, tomada num plebiscito em 2014. Para escoceses, a UE sempre funcionou como um contrapeso para o poderio dos ingleses sobre seu país.

O mesmo fenômeno ocorre ainda em maior grau com a Irlanda do Norte. As negociações de paz que encerraram décadas de luta fratricida entre católicos e protestantes irlandeses teriam sido impossíveis sem a existência e a intervenção da UE. A causa unionista ganhará força agora. As consequências são imprevisíveis.

Quem pagará o maior preço serão os próprios britânicos, em especial os ingleses. Umrelatório do FMI fala em queda de até 9,5 pontos percentuais no PIB em virtude do Brexit, que “precipitaria um período prolongado de incertezas, levando a volatilidade financeira e um baque sobre a produção".

O Reino Unido abriga fábricas de várias multinacionais que espalham sua produção pela Europa, como Nissan, Dassault ou Airbus. Sem as vantagems oferecidas pelo mercado livre, elas fatalmente procurarão outros lugares. O setor financeiro será o mais afetado. A partir de hoje, Londres perde o posto de segundo centro das finanças globais. Não há no continente europeu nenhum outro local capaz de ocupá-lo – nem Frankfurt nem Paris.

O principal efeito do Brexit se dá plano simbólico. Ele é o primeiro baque concreto no maior projeto de integração política e econômica já levado a cabo pela humanidade. A UE surgiu dos escombros da Segunda Guerra, com base na crença de que o livre comércio era o melhor antídoto para o chauvinismo e a xenofobia, vistos como causa das tragédias que se abateram sobre o continente.

A saída do Reino Unido não significa necessariamente o fracasso desse projeto. Ao contrário. A Europa viveu um período quase ininterrupto de 70 anos de paz e crescimento. Mas o Brexit mostra que o sentimento nacional ainda importa. Não dá para, em nome de sonhos, passar por cima dele e ignorar a realidade.