quinta-feira, 27 de julho de 2017

A nova perspectiva de Paulo - parte 02



Quando a gente pensa que já viu de tudo nos círculos acadêmicos de estudos bíblicos é surpreendido com a chegada de uma abordagem potencialmente revolucionária sobre o apóstolo Paulo. Essa abordagem acaba trazendo um profundo impacto em uma das doutrinas mais preciosas para os evangélicos, especialmente aqueles que se identificam com a Reforma protestante do séc. XVI.

Estou falando da “Nova Perspectiva sobre Paulo,” um movimento que tem cerca de 20 anos de existência e que somente mais recentemente chegou ao Brasil, especialmente através dos escritos N. T. Wright, de quem falaremos mais adiante. A NPP (“Nova Perspectiva sobre Paulo”) desde cedo caiu sob fogo cerrado de estudiosos dentro do campo Reformado. Homens do calibre de John Piper, D. A. Carson, Lingon Duncan, Sinclair Ferguson, e muitos outros têm escrito livros e artigos e feito palestras manifestando preocupação com as implicações deste movimento (veja aqui um estudo meu em português).

O que é, então, a NPP? Quais as suas propostas e por que elas têm causado furor entre os estudiosos evangélicos reformados? De maneira sucinta, a NPP defende que desde a Reforma protestante nós temos lido as cartas de Paulo de maneira errada. Pensávamos que o centro da pregação dele era a justificação pela fé sem as obras da lei, quando na verdade Paulo estava polemizando contra aqueles pregadores judeus cristãos que não queriam a presença dos gentios na nascente igreja judaico-cristã. É preciso, então, abandonar a “velha” perspectiva, que teve origem em Lutero e demais Reformadores, e adotar uma nova, que faça justiça aos fatos da época do apóstolo.

Deixe-me tentar explicar melhor como tudo isto começou, se é que é possível fazê-lo num espaço curto e mais ou menos informal como este.

1) Primeiro, é necessário entender que antes de ser uma nova perspectiva sobre Paulo, esta abordagem é uma nova perspectiva sobre o Judaísmo da Palestina nos tempos de Paulo. Estudiosos como E. P. Sanders (Paul and Palestinian Judaism, 1977) conseguiram convencer a muitos que o Judaísmo do primeiro século não era uma religião legalista de busca de méritos para a salvação. Os judeus já se consideravam salvos e faziam as obras da lei para permanecer no povo de Deus. Os fariseus, apesar do seu apego às leis de Moisés, sabiam que a salvação não era pela obediência a estas leis, mas pela fidelidade de Deus à aliança feita com Abraão. Portanto, quando Paulo dizia que a salvação era pela fé sem as obras da lei ele não estava combatendo o legalismo ou a tentativa de salvação pelas obras. Ele estava simplesmente condenando a ênfase que os judeus davam a estas obras a ponto de não permitir que não-judeus convertidos ao Cristianismo fossem considerados parte do povo de Deus. 

Apesar de sua importância, há vários problemas com a obra de Sanders. Um deles é que ele usou fontes do século III e IV (Talmude, Mishna, midrashes) para reconstruir o pensamento judaico do século I, algo que chamamos de anacronismo. 

2) A nova perspectiva de Sanders sobre o Judaísmo trouxe uma nova perspectiva sobre a Reforma. Para os defensores da NPP, Lutero leu Paulo à luz da sua própria experiência e assim desviou as igrejas reformadas da correta interpretação do que o apóstolo havia escrito sobre salvação, justificação e obras da lei. Já em 1963 o luterano Krister Stendhal havia escrito um artigo influente (“Paulo e a Consciência Introspectiva do Ocidente”) em que ele acusava Lutero de ter imposto a Paulo o seu próprio drama existencial quanto à salvação. Paulo nunca teve problemas de consciência antes de sua salvação, disse Stendhal, nem qualquer outro judeu daquela época. Ninguém estava perguntando “o que posso fazer para ser salvo” – essa foi a pergunta de Lutero, mas não era a pergunta de Paulo e nem dos judaizantes com quem ele discutiu em Gálatas. Além disto, as Confissões de Agostinho também influenciaram em demasia a igreja no Ocidente, levando-a à introspecção e à busca individual da salvação. Isso fez Lutero ver na polêmica de Paulo contra as “obras da lei” em Gálatas e Romanos a sua própria luta em busca de salvação dentro da igreja católica – o que foi um erro. Os defensores da NPP criticam os reformados por terem defendido durante tanto tempo que o centro da pregação de Paulo, bem como do Novo Testamento, era a doutrina da justificação pela fé, quando esta, na verdade, era a agenda de Lutero e não de Paulo. 

Todavia, como tem sido observado, não foram somente os luteranos que tiveram este entendimento – o protestantismo em geral, inclusive aquele não influenciado diretamente pelas obras de Lutero e demais reformadores, sempre entendeu, lendo sua Bíblia, que ela trata essencialmente deste assunto: de que maneira o homem pode ser justificado diante de um Deus santo e justo?

3) Na seqüencia, veio uma nova perspectiva sobre as “obras da lei”. A Reforma sempre entendeu que “obras da lei” em Gálatas e Romanos, contra as quais Paulo escreve, eram aqueles atos praticados pelos judeus em obediência aos mais estritos preceitos da lei de Moisés. Eles procuravam guardar tais preceitos visando acumular méritos diante de Deus. Foi contra tais obras que Paulo asseverou aos gálatas e aos romanos que a salvação é pela fé em Jesus Cristo, somente. Mas, James G. Dunn, em especial, argumentou que as “obras da lei” a que Paulo se refere em Gálatas e Romanos eram a circuncisão, a guarda do calendário religioso e as leis dietárias de Moisés – sinais identificadores da identidade judaica no século I. Paulo era contra aquelas coisas porque elas separavam judeus dos gentios e impediam que gentios convertidos se sentassem à mesa com judeus convertidos. Em outras palavras, a polêmica de Paulo não era contra o legalismo dos judaizantes, mas contra a insistência deles em manter os gentios distantes. A questão não era soteriológica, mas eclesiástica. A Reforma havia perdido este ponto de vista por causa de Lutero e Agostinho. 

Mas, cabe aqui a observação, se as obras da lei não eram esforços meritórios fica muito difícil entender não somente Gálatas e Romanos, mas inclusive passagens de Atos, como esta: “Alguns indivíduos que desceram da Judéia ensinavam aos irmãos: Se não vos circuncidardes segundo o costume de Moisés, não podeis ser salvos” (At 15:1). No fim tenho de escolher se acredito em Atos ou no que Dunn está dizendo.

4) Tudo isto trouxe o que James Dunn chamou de uma “nova perspectiva” sobre Paulo. Esse movimento se dividiu em duas linhas gerais. (a) Os mais radicais, que acham, como H-J Schoeps, que Paulo, por ser um judeu da Dispersão, não entendeu e portanto torceu inadvertidamente a soteriologia do Judaísmo da Palestina, atacando-o por julgar que era uma religião baseada em méritos, quando, na verdade, não era. Outros, como H. Räisänen, alegaram que Paulo era judeu por fora e gentio por dentro, o que lhe causava uma ambigüidade nunca vencida, que o levava a falar mal da lei em Gálatas e bem dela em Romanos. Nesta vertente, o problema é Paulo, que passou uma visão distorcida dos judeus e fariseus do primeiro século. Esta linha dentro da “nova perspectiva” não tem muitos defensores. A que ganhou mais aceitação foi a segunda, (2) aqueles que afirmam que o problema não é Paulo, mas os reformados que o leram com os óculos de Lutero. É preciso olhar Paulo de uma nova perspectiva, que leve em conta as descobertas de Sanders (Judaísmo não era legalista), Stendhal (Paulo era um fariseu sem problemas com a lei), Dunn (obras da lei são apenas marcadores de identidade judaicos). É preciso reler Gálatas e Romanos deste novo ponto de vista e tentar descobrir qual era realmente a polêmica de Paulo com os judeus, judaizantes e fariseus de sua época. Tem que ser outra coisa, mas não este assunto de salvação pela fé sem as obras da lei.

A pergunta que não quer calar é como a Igreja toda, mesmo contando com exegetas e teólogos do maior calibre, conseguiu se enganar por tanto tempo, do sécuilo XVI até hoje, em um assunto tão básico?

5) E por fim, tudo isto trouxe uma nova perspectiva sobre a justificação proposta pelos defensores da NPP. Os reformados sempre afirmaram, com base em Gálatas, Romanos e demais livros do Novo Testamento, que a mensagem central das cartas de Paulo é que os pecadores podem ser justificados de seus pecados mediante a fé em Jesus Cristo, sem obras pessoais e meritórias. E que esta justificação consiste em Deus nos imputar – isto é, atribuir – a própria justiça de Cristo. Lutero dizia que somos justificados com uma justiça alheia, a de Cristo, e não com uma justiça nossa, que procede de nossa obediência à lei de Deus (obras da lei). Lutero e demais reformadores entenderam que esse era exatamente o ponto de discussão entre Paulo e os judaizantes, que à sua época queriam exigir que os crentes não judeus guardassem a lei de Moisés para poderem ser salvos.

É aqui que entra em cena Nicholas Thomas Wright, bispo anglicano de Durham, Inglaterra, provavelmente hoje o estudioso mais conhecido e destacado que defende a “nova perspectiva” sobre Paulo. Ele ganhou a simpatia de muitos evangélicos por suas posições firmes contra o aborto e a eutanásia e as uniões civis de homossexuais dentro da Igreja Anglicana. 

O ponto mais controverso da posição de Wright sobre Paulo é sua tentativa de redefinir a doutrina da justificação pela fé. Wright abraça a “nova perspectiva”, seguindo Stendahl, Sanders e Dunn. A principal obra de Wright, que o marcou como um defensor da “nova perspectiva” é What St. Paul Really Said (1997). Segundo ele, para Paulo a justificação não significa que Deus transfere a sua própria justiça ao pecador, como ensina a doutrina da imputação; Deus, à semelhança do que se faz num tribunal, considera vindicado o pecador, sem, todavia, imputar-lhe a sua própria justiça. Segundo Wright, é esse o caso nos tribunais gregos – nenhum juiz imputa ao acusado a sua própria justiça pessoal, simplesmente o absolve. A conclusão é que Paulo nunca ensinou a doutrina da imputação da justiça. Não é isso o que Paulo entende por justificação, justificar e justificado. Deus absolve o pecador por causa de sua fidelidade ao pacto, à aliança. É isso que significa a sua justiça.

Tem coisa boa na NPP? Tem, sim. O movimento nos desperta para estudarmos o contexto de Paulo mais profundamente. Os estudos de Sanders nos trouxeram muitas informações sobre o pensamento rabínico dos séculos III e IV quanto à salvação. As observações de Stendhal nos ajudam a ter uma visão mais correta sobre a relação pessoal de Paulo para com a lei – ele realmente não era um fariseu em crise existencial antes de se converter. E Dunn chama nossa atenção para o aspecto missiológico e social da polêmica de Paulo contra as obras da lei. Todavia, estes aspectos positivos não anulam as sérias implicações do movimento, especialmente quanto à doutrina da justificação.

Isso pode soar como mais uma daquelas questiúnculas irrelevantes que ocupam os teólogos a maior parte do tempo. Todavia, não é. O que a NPP coloca em jogo são duas das mais importantes doutrinas da fé cristã, que são a morte substitutiva de Cristo e a imputação da sua justiça aos que crêem. Mesmo que Wright fale que os crentes terão seus pecados perdoados, fica a pergunta: com base em que, se a morte de Cristo não é substitutiva e nem seus méritos são transferíveis?

Prefiro a velha perspectiva. Nem sempre o vinho novo é o melhor.

(Por Augustos Nicodemus)
Fonte: http://tempora-mores.blogspot.com.br/2011/02/nova-perspectiva-sobre-paulo.html

segunda-feira, 24 de julho de 2017

A teologia da nova perspectiva de Paulo



A nova perspectiva de PauloA história da “nova perspectiva de Paulo”2
Krister Stendahl publicou, no começo de 1970, o livro Paul Among Jews and Gentiles, em que sugeriu que a interpretação tradicional usava as lentes de Lutero e da Reforma para interpretar Paulo, dando início à chamada “nova perspectiva de Paulo”. Em 1977, foi lançada a obra de E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, que se tornou uma obra extremamente influente no que se refere à mudança de perspectiva no estudo sobre a relação entre o judaísmo e Paulo, seguida por Paul, the Law and the Jewish people, escrita em 1983.

Sanders, partindo de suas pesquisas no material rabínico, argumentou que o judaísmo da Palestina, na época de Jesus e de Paulo, não era uma religião legalista, preocupada em acumular méritos diante de Deus — antes, era uma religião baseada na graça de Deus revelada nas alianças com Israel, especialmente no Sinai. Portanto, longe de ser legalista, o fariseu da época de Jesus e de Paulo se considerava, por nascimento, dentro da graça e da aliança. Ele não praticava as “obras da lei” de forma legalista, nem para justificar-se — mas simplesmente para manter-se dentro da aliança. Dessa forma, Sanders concluiu que o padrão religioso do judaísmo palestino não era o legalismo, mas o nomismo da aliança, que consistia de “entrar” (pela graciosa eleição de Deus) e “permanecer” (pela obediência) no pacto.

James D. G. Dunn é outro autor importante. Sua ênfase no papel social das “obras da lei” tem recebido grande aceitação. Para Dunn, Paulo atacou as “obras da lei” não porque elas expressassem o desejo de alcançar mérito por parte dos judeus, mas porque entende que elas fazem distinção entre os judeus, o povo de Deus da aliança e os gentios, a quem o evangelho tem sido oferecido. Como Augustus Nicodemus destaca, para Dunn, as “obras da lei”, que Paulo identifica como restritas à circuncisão, às leis sobre alimentos puros e impuros e aos dias especiais do calendário judaico, são emblemas que caracterizam o judaísmo e devem ser rejeitadas porque enfatizam a separação entre judeus e não judeus, a qual Cristo veio abolir.

O trabalho de Stendahl e Sanders, entre outros, têm influenciado de forma decisiva o debate atual da nova perspectiva sobre a relação entre Paulo e a lei. Percebe-se uma mudança na abordagem de vários estudiosos na direção de uma percepção mais positiva e menos crítica ao judaísmo, aos judeus e à lei. Como consequência, Paulo tem sido visto de forma negativa, como detentor de uma perspectiva distorcida da religião dos seus pais, ou mesmo como mal-intencionado em sua maneira de caricaturar e de condenar o judaísmo. E o que é ainda mais sério, a polêmica de Paulo contra as ‘obras da lei’ é lançada no vácuo, já que, segundo a ‘nova perspectiva’, ninguém no primeiro século estava dizendo que a salvação era por obras — muito menos os judeus. Segundo os exegetas da ‘nova perspectiva’, ou Paulo entendeu mal o judaísmo da sua época (...), ou então não estamos entendendo bem Paulo (...); ele realmente nunca foi contra as ‘obras da lei’ como um caminho falso de salvação, como Lutero e outros reformadores afirmaram, e suas críticas à lei, às ‘obras da lei’ e ao judaísmo precisam ser interpretadas de maneira diferente da tradicional.

Em síntese, os defensores da “nova perspectiva” afirmam que: 
1. O judaísmo antigo não era legalista, no sentido de ensinar a justificação pelas obras, e assim não pode ser interpretado como uma antecipação do legalismo medieval; 

2. O argumento de Paulo contra os judaizantes não tinha a ver com a justificação pelas obras, em oposição à justificação pela graça, mas com o lugar dos gentios na igreja, em face das reivindicações dos judeus de serem o único povo de Deus e sua tendência de usar as obras da lei para excluir os gentios da aliança, em vez de incluí-los; 

3. O nomismo da aliança do Antigo Testamento é o meio divino de salvação para Israel, enquanto o evangelho livre da lei é o meio divino de salvação para os gentios; 

4. Os reformadores não levaram a sério o contexto religioso de Paulo, e interpretaram mal o evangelho; 

5. A oposição entre a lei e o evangelho, enfatizada pelos reformadores, não é bíblica, nem a tendência de descartar qualquer papel para as obras, pois a obediência à lei era considerada a maneira de manter-se fiel à aliança; 

6. Os que não concordam com a “nova perspectiva” correm o risco de cair no antissemitismo, implícito ou explícito.3

A resposta à “nova perspectiva”
Para entender o ensino do Novo Testamento, é preciso conhecer a natureza da religião dos judeus do período do segundo templo. E, como vimos, hoje existe um acalorado debate entre os eruditos do Novo Testamento sobre esse tema, o que levou alguns biblistas, seguidores da chamada “nova perspectiva”, como E. P. Sanders, James Dunn e N. T. Wright a modificarem radicalmente a interpretação de vários textos bíblicos, particularmente os de Paulo.

A “nova perspectiva” tem dois pontos principais que são de interesse para nosso estudo: 1) os judeus do primeiro século não eram legalistas e 2) a justificação não é uma questão de como entrar na aliança, mas sobre quais são os sinais de se encontrar na aliança. 

Em relação ao primeiro ponto, os proponentes da “nova perspectiva” dizem que os judeus não acreditavam em salvação pelas obras, mas na justificação pela graça por meio da fé. A interpretação legalista foi um erro, provocado pela controvérsia entre Agostinho e Pelágio e, depois, entre Lutero e a igreja católica. Lutero e Agostinho, supostamente, leram Paulo com os óculos dessas controvérsias, e entenderam erroneamente o que Paulo quis dizer na sua discussão da livre graça versus as “obras da lei”. Quanto ao segundo, a justificação não tem a ver com o como ser salvo, mas sobre como saber quem é salvo.5 Outra afirmação da “nova perspectiva” é que a doutrina da justificação não é uma preocupação central na teologia de Paulo e não está no centro do evangelho.

À luz disso, o discurso de Paulo em Gálatas não seria uma refutação da justificação pelas boas obras. A questão é sobre como se identifica quem faz parte da aliança. Os judeus seguiam o “nomismo pactual”. Assim, deve-se guardar a lei como sinal de quem pertence ao povo da aliança. Por isso, eles queriam impor a lei aos convertidos gentios, não para salvá-los (pois já eram salvos), mas para que esses se distinguissem dos ímpios. Paulo respondeu dizendo que o sinal de quem pertence ao povo da aliança não é a circuncisão e nem o guardar a lei, mas é a fé somente. Nesse sentido, a fé dos gentios era o único sinal necessário não para ser salvo, mas como o sinal exterior para mostrar que eles faziam parte da comunidade da aliança. A justificação, então, não seria uma declaração de que a pessoa é justa, perdoada dos pecados, diante da lei, mas a declaração de que essas pessoas realmente pertencem ao povo da aliança. Assim, a força do argumento de Paulo na epístola aos Gálatas e em outras de suas discussões contra o legalismo judaizante, é completamente esvaziada.
    
Em resposta, vários eruditos do Novo Testamento afirmam que a “nova perspectiva” não leva em conta todos os dados acerca do judaísmo do primeiro século. Enquanto é correto entender a fé do Antigo Testamento como uma religião da graça e não das obras, parece que durante o período interbíblico o legalismo floresceu em Israel. Na literatura rabínica da época, existem duas tradições diferentes de justificação, uma fundamentada na eleição de Israel e outra alicerçada nas obras do indivíduo.6 O fato é que, no discurso da elite religiosa judaica, tanto as obras quanto a graça estavam presentes. Não há razão para se duvidar de que a tendência em favor do legalismo poderia ter sido mais forte na religião popular. Mas, de qualquer maneira, fica claro que o legalismo era um problema e, com certeza, um problema que Jesus e Paulo enfrentaram no dia da pregação das boas-novas.

É justamente no contexto desta última observação que devemos destacar a questão dos discursos de Jesus contra os judeus. É necessário lembrar que a polêmica de Jesus foi dirigida não contra o povo de Israel, mas contra a elite religiosa, que estava desencaminhando o povo. Qual foi o ponto em disputa entre Jesus e a liderança religiosa? Obviamente, um ponto foi a questão de sua identidade como o Messias, o Filho de Deus, como se vê em João 8. Mas, além disso, na discussão entre Jesus e os fariseus, em Mateus 23, Blomberg nota que há elementos de legalismo nas pesadas exigências que os fariseus estabeleceram para o povo (Mt 23.4, 13-14).7 Também podemos ver na parábola do fariseu e do publicano que o fariseu dependia de suas obras como base de sua justificação, enquanto o publicano suplicou pela graça de Deus. A parábola não faria sentido se não houvesse legalismo na prática dos fariseus. Caso contrário, qual seria o objetivo de Jesus ao contá-la? 

Podemos fazer as mesmas observações sobre os argumentos de Paulo contra as “obras da lei”. Se não houvesse um elemento de legalismo operando no pensamento de pelo menos alguns judeus, por que ele argumentou contra essas obras como a base para se gloriar? O argumento permaneceria o mesmo, se os judeus estivessem apenas se gloriando nas obras como sinais de sua membresia na aliança e não como um sistema de mérito através do qual a justiça seria adquirida? Se esse era o caso, então por que Paulo continua o argumento com o contraste entre o trabalhador, que merece um salário, e a fé, que é o instrumento para receber a justiça imputada e não merecida (cf. Rm 4.4-8)?

Além disso, é interessante notar que os que seguem a “nova perspectiva” querem realçar as diferenças entre a soteriologia da igreja católica medieval e a dos judeus antigos. Mas, ao examinar a questão mais de perto, o paralelo entre ambos os sistemas permanece. A “nova perspectiva” diz que os judeus não acreditavam que a justificação (que era a membresia no povo da aliança) foi recebida através das obras. As pessoas não entraram na aliança fazendo as obras da lei. Mas, nisso, o catolicismo é igual à “nova perspectiva”. Para os católicos, como já vimos, a justificação inicial vem mediante o batismo, e a criança é aceita na igreja, o que seria o equivalente de fazer parte da aliança, por meio da graça, e não por obras. Na “nova perspectiva”, segundo Sanders, embora as obras da lei não sejam o meio para entrar na aliança, elas são essenciais para se permanecer nela. Quem não faz as obras da lei, então, não pode continuar no estado de justificação. O argumento do catolicismo romano é exatamente esse. As boas obras são necessárias para manter a justificação. Foi exatamente contra isso que Lutero, Calvino e toda a Reforma Protestante lutaram. Portanto, Moo está absolutamente correto ao afirmar que a “nova perspectiva” não conseguiu livrar o sistema rabínico do sinergismo entre a fé e as obras. Uma vez que as boas obras são introduzidas no processo, elas passam a ter papel decisivo na salvação. Na prática, o legalismo será o resultado. Pela força da polêmica de Paulo contra a justificação pelas boas obras, é evidente quão relevante isso era na vida da igreja primitiva.

Essa curta discussão não tem como alvo lidar adequadamente com todas as questões levantadas pela “nova perspectiva” sobre Paulo. Mas, apesar de essa posição estar sendo aceita por vários eruditos, ainda existem muitos que se opõem a ela no mundo acadêmico. O mundo de Israel do primeiro século era sociologicamente complexo, portanto seria um erro reduzir as crenças religiosas do povo a uma unidade monolítica. Existia uma diversidade de práticas, crenças e seitas entre o judaísmo do primeiro século. Entre elas, o legalismo teve seu lugar e, assim, era uma ameaça à vida da nascente igreja. Esse legalismo precisava ser enfrentado, e tanto Jesus quanto Paulo responderam ao desafio à altura. Embora os estudos recentes possam enriquecer nossa interpretação de Paulo com novas informações, eles não conseguiram produzir dados convincentes que bastem para derrubar a interpretação tradicional dos teólogos luteranos e reformados sobre obras versus graça.

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  1Resumido e adaptado de Franklin Ferreira e Alan Myatt, Teologia Sistemática (São Paulo: Vida Nova, 2007), p. 308-310, 337-341. 
  2Cf. Augustus Nicodemus Lopes, “Paulo e a lei de Moisés: um estudo sobre as ‘obras da lei’ em Gálatas”, em Alan B. Pieratt (ed.). Chamado para servir; ensaios em homenagem a Russell P. Shedd, p. 65-73. Para um resumo da posição de Stendahl, Sanders e Dunn, cf. John Stott, Romanos, p. 19-29. Cf. também Alister McGrath, Teologia sistemática, histórica e filosófica; uma introdução à teologia cristã, p. 528-530 e Alister McGrath, Iustitia Dei, p. 376-387.
  3Peter Stuhlmacher, Lei e graça em Paulo; uma reafirmação da doutrina da justificação, p. 47. Cf. também Donald A. Hagner, “Paulo e o judaísmo: testando a nova perspectiva”, em: Peter Stuhlmacher, Lei e graça em Paulo, p. 93-133.
  4Cf., por exemplo, E. P. Sanders, Paul and Palestinian Judaism, James. D. G. Dunn, A teologia do apóstolo Paulo, p. 387-447 e N. T. Wright. What saint Paul really said. É importante ter em mente que os adeptos da “nova perspectiva” discordam uns dos outros sobre vários pontos de interpretação, mas têm em comum os pontos essenciais aqui mencionados. Entre os três, Wright tem se identificado como evangélico, afirmando a natureza forense da justificação. Por isso, e por causa do valor dos seus outros escritos, ele tem alguns defensores entre os evangélicos. Até mesmo os críticos entre os evangélicos reconhecem o valor da erudição de Wright em muitos pontos. Mesmo assim, entre outros problemas, ele redefine a justificação de modo que a doutrina deixa de ser uma questão soteriológica (como a pessoa é salva), passando a ser eclesiológica (quem está dentro do povo de Deus). Em outras palavras, a justificação não se refere a como se tornar justo (moralmente inocente) diante da lei. Assim, Wright quer minimizar as diferenças entre a fé reformada e o ensino católico. Parece que o ensino de Wright não é consistente, colocando em dúvida seu compromisso com a fé evangélica. Algumas obras de Wright, como seus escritos acerca da ressurreição de Jesus, são muito proveitosos. Mas nossa opinião é que, apesar de quaisquer pontos positivos que se encontrem nas obras de Wright, ele não é um guia confiável para se entender corretamente a questão da justificação.
  5Peter Stuhlmacher, Lei e graça em Paulo, p. 40-47.
  6Peter Stuhlmacher, op. cit., p. 49. Cf. também Douglas Moo, The Epistle to the Romans, p. 211-217.
  7Craig Blomberg, Matthew. The New American Commentary, v. 22, p. 341, 344. 

Fonte: Por Franklin Ferreira. Link: http://www.teologiabrasileira.com.br/