A Ordem de Melquisedeque
Descreverei o que creio sobre a Ordem de
Melquisedeque, conforme mencionada nas Escrituras. Melquisedeque aparece do
nada, sem antecedentes e sem explicações. Abraão encontra com ele e se verga
diante dele, e lhe paga o dízimo de tudo quanto tinha consigo. Melquisedeque
abençoa a Abraão. Então, assim como veio, ele vai, sem deixar vestígios.
Mais tarde, séculos depois disto, Melquisedeque
aparece nos Salmos, quando, também do nada, se diz que o Senhor jurou que Seu
Enviado seria feito Sumo Sacerdote, segundo a Ordem de Melquisedeque. Somente
isto e nada mais. Até a Carta aos Hebreus. É nela que Melquisedeque volta como
nunca antes.
Agora ele é aquele que em Cristo tem seu Sumo
Sacerdote. Jesus se torna Sumo Sacerdote de uma nova ordem sacerdotal, a qual
não era étnica, pois não era judaica. Nem era levitica, posto que Jesus não era
da tribo de Levi, mas de Judá; não tendo, portanto, qualquer relação com o sacerdócio
anterior, o qual tinha na Ordem Levitica, da tribo de Levi, um dos doze
patriarcas de Israel, os representantes humanos do culto que se prestava ao
Deus de Abraão.
Do mesmo modo se pode dizer que ela nem tampouco se
condicionava à informação histórica, carregada de esperança redentiva, que
viajava como fé, mas também como especulação teológica e fixação de tradição em
Israel. Jesus sendo Sumo Sacerdote segundo uma ordem à qual o próprio Abraão —
pai do povo da revelação escrita — se curvava, é apresentado na Carta aos
Hebreus como Aquele que TAMBÉM abençoa a Israel e todos os que conhecem a
informação da Escritura; porém, que não se condiciona nem à geografia, nem à
história registrada como sagrada, nem à informação, nem a qualquer fronteira,
de qualquer que seja a natureza, estando Suas mãos sobre todos os que Ele mesmo
desejar, e com a mesma liberdade com a qual abençoou a Abraão.
A Carta aos Hebreus diz que esse Melquisedeque é
semelhante ao Filho de Deus, sem principio de dias e sem fim de existência;
sendo superior a tudo quanto era relativo a Abraão, visto que é o maior quem
abençoa o menor. Assim, Melquisedeque não é explicado, mas apenas afirmado. De
fato, ele paira sobre a História, é um pingo de peso explosivo num Salmo, e
arrebenta tudo e todas as ordens, quando relativiza a mais importante de todas,
a que procedia de Abraão.
Ora, o mistério de Melquisedeque é algo que ecoa o
Cordeiro imolado antes de tudo, antes de qualquer ato criador de Deus. Desse
modo, pode-se dizer que o espírito da Carta aos Hebreus acerca de
Melquisedeque, é aquele que o apresenta como uma manifestação do Cristo Eterno,
o qual não foi feito Cristo, no Jesus Histórico; mas sim, sendo o Cristo
Eterno, se mostrou como tal em Jesus, na História. Talvez seja por esta razão,
também, que Jesus disse que Abraão viu os Seus dias e regozijou-se.
O sacerdócio
universal dos crentes
O sacerdócio
universal dos crentes, um dos ensinos pilares da reforma protestante, é algo
meio desconhecido atualmente nas igrejas evangélicas, principalmente no meio
pentecostal e neopentecostal. Não é incomum ouvir dizer que o pastor é o ungido
do Senhor, o sacerdote, que ele é que pode ministrar a benção na vida do povo,
etc.
Dentre os princípios fundamentais
defendidos pelos reformadores do século XVI, está o “Sacerdócio Universal dos
Fiéis” ou “Sacerdócio de Todos os Crentes”. Os outros princípios, dos
quais este decorre, são as Escrituras como norma suprema de fé e vida e a
salvação pela graça mediante a fé, alicerçada na obra redentora de Jesus
Cristo.
Embora o Velho Testamento apresente
claramente a noção de um ofício sacerdotal exercido por elementos da tribo de
Levi em benefício do povo de Israel, existem passagens que antecipam um
entendimento mais amplo dessa função. Êxodo 19.5-6: “Se diligentemente ouvirdes
a minha voz, e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade
particular dentre todos os povos... vós me sereis reino de sacerdotes e nação
santa”. Outro texto relevante é Isaías 61.6: “Vós sereis chamados sacerdotes do
Senhor, e vos chamarão ministros de nosso Deus”.
1. Novo Testamento
No Novo Testamento, o conceito de sacerdócio tem
dois aspectos: (a) Jesus Cristo é o grande sumo sacerdote: todas as
funções do sacerdócio da antiga dispensação concentram-se nele, e são por ele
transformadas. Ele é o único mediador entre Deus e os seres humanos (1 Tm 2.5).
Ele é o representante de Deus junto aos homens e o representante dos homens
junto a Deus. Ele é, ao mesmo tempo, o sacerdote e o sacrifício. A Carta aos
Hebreus expõe claramente a superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o
sacerdócio levítico e apresenta o caráter definitivo e totalmente eficaz do seu
auto-sacrifício sobre a cruz (Hb 2.17; 3.1; 4.14s; 5.10; 6.20; 7:24-27;
9:12,26; 10.12). A literatura joanina também fala repetidamente do sacerdócio
de Cristo, como em João 1.29.
(b) Todos os crentes
partilham desse sacerdócio: isso se expressa principalmente nas áreas da
adoração, serviço e testemunho. 1 Pedro 2.5: “Também vós mesmos, como pedras
que vivem, sois edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim
de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de
Jesus Cristo”. 1 Pedro 2.9: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real,
nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as
virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. O
Apocalipse destaca o aspecto governamental desse sacerdócio: “Àquele que nos
ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino,
sacerdotes para o seu Deus e Pai...” (1.5-6); “Digno és de tomar o livro e de
abrir-lhe os selos, porque foste morto e com o teu sangue compraste para Deus
os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os
constituíste reino e sacerdotes” (5.9-10).
O Novo Testamento não menciona a
existência de um ofício sacerdotal na Igreja. Essa idéia surgiu posteriormente,
em escritores como Clemente (ministério cristão composto de sumo sacerdote,
sacerdote e levita), a Didaquê (chama os profetas cristãos de “vossos sumos
sacerdotes” e refere-se à eucaristia como um sacrifício) e, mais especificamente,
em Tertuliano e Hipólito, que se referem aos ministros cristãos como
“sacerdotes” e “sumos sacerdotes”.
2. Idade Média
Na Idade Média, desenvolveu-se plenamente a idéia
do sacerdócio (o clero) como uma classe distinta dos leigos, dotada de
dignidade e direitos especiais. Essa idéia resultou do entendimento da
eucaristia como um sacrifício – a repetição do sacrifício de Cristo –, o que
exigia a figura do sacerdote. Além disso, a noção de que os (sete) sacramentos
são canais quase que exclusivos da graça de Deus e só podem ser ministrados
através do sacerdócio, deu aos sacerdotes, à hierarquia, um enorme poder sobre
as vidas dos fiéis. Os leigos tornaram-se totalmente dependentes da ministração
dos sacerdotes para receberem os benefícios da graça de Deus e, em última
análise, a própria salvação.
Um exemplo dos malefícios causados
por esses dogmas pode ser visto na prática do interdito ou interdição, um
instrumento utilizado pelos papas e outros líderes religiosos contra os reis
europeus, mediante o qual o clero ficava proibido de ministrar os sacramentos
em uma cidade, região ou país inteiro como um instrumento de pressão
político-religiosa.
3. Martinho Lutero
Em sua peregrinação espiritual, Lutero veio a ter
uma compreensão da graça de Deus que se chocou frontalmente com esse
entendimento da Igreja e do ministério cristão. A partir de 1512, quando se
tornou professor de estudos bíblicos na Universidade de Wittenberg, ele começou
a encontrar nas Escrituras uma série de verdades revolucionárias a respeito da
salvação. A salvação fundamentava-se exclusivamente na graça de Deus e na obra
expiatória de Cristo. Mediante a fé ou confiança nessa graça e nessa obra, o
indivíduo era justificado, ou seja, aceito como justo por Deus, sendo que essa fé
também era uma dádiva do alto. As obras ou méritos humanos não desempenhavam
nenhum papel nesse processo, mas a salvação era, do começo ao fim, uma dádiva
da livre graça de Deus ao pecador arrependido.
A partir de 31 de outubro de 1517,
Lutero passou a elaborar as implicações mais amplas dessa nova percepção. Ele o
fez principalmente através de uma obra que escreveu em 1520, A
Liberdade do Cristão, onde argumenta que “de posse da primogenitura e de
todas as suas honras e dignidade, Cristo divide-a com todos os cristãos para
que por meio da fé todos possam ser também reis e sacerdotes com Cristo, tal
como diz o apóstolo Pedro em 1 Pe 2.9... Somos sacerdotes; isto é muito mais
que ser reis, porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e
rogar pelos outros”.
Mais adiante ele pondera: “Tu
perguntas: ‘Que diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na
cristandade, se todos são sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’,
‘cura’, ‘religioso’ e outras semelhantes foram injustamente retiradas do meio
do povo comum, passando a ser usadas por um pequeno número de pessoas
denominadas agora ‘clero’. A Escritura Sagrada distingue apenas entre os doutos
e os consagrados, chamando-os de ministros, servos e administradores, que devem
pregar aos outros a Cristo, a fé e a liberdade cristã. Já que, embora sejamos
todos igualmente sacerdotes, nem todos podem servir, administrar e pregar. Como
disse Paulo em 1 Co 4.1: “Assim, pois, importa que os homens nos considerem
como ministros de Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus.” (A
Liberdade do Cristão, cap. 17).
Os leigos têm a mesma dignidade que
os ministros. Todas as profissões e atividades são igualmente valiosas aos
olhos de Deus. Os ministros diferenciam-se dos leigos simplesmente nisso: foram
escolhidos para realizar certos deveres definidos, para que haja ordem na casa
de Deus. Foi esse princípio do sacerdócio de todos os crentes que libertou os
homens do temor e dependência do clero. É o grande princípio religioso que jaz
na base de todo o movimento da Reforma. Não somente Lutero e Lutero, mas todos
os demais reformadores o afirmaram.
4. Implicações práticas
Dessa verdade bíblica, decorrem algumas implicações
práticas:
a) O princípio do sacerdócio universal dos crentes nos fala do grande privilégio que temos como filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote, cada cristão tem livre e direto acesso à presença de Deus, tendo como único mediador o Senhor Jesus Cristo.
a) O princípio do sacerdócio universal dos crentes nos fala do grande privilégio que temos como filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote, cada cristão tem livre e direto acesso à presença de Deus, tendo como único mediador o Senhor Jesus Cristo.
b) Todavia, esse princípio jamais
deve ser entendido de maneira individualista. A ênfase dos reformadores está no
seu sentido comunitário. Somos sacerdotes uns dos outros, devendo orar,
interceder e ministrar uns aos outros. À luz do Novo Testamento, todo cristão é
um ministro (diákonos) de Deus, o que ressalta as idéias de serviço e
solidariedade.
c) Num certo sentido, todos os
crentes são “leigos”, palavra que vem do termo grego laós, o povo
de Deus. Todavia, a Escritura claramente fala de diferentes dons e ministérios.
Alguns cristãos são especificamente chamados, treinados e comissionados para o
ministério especial de pregação da Palavra e ministração dos sacramentos.
d) Os leigos, no sentido daqueles que
não são “ministros da Palavra”, também têm importantes esferas de atuação à luz
do Novo Testamento. Os líderes da Igreja devem falar sobre o ministério do povo
de Deus, bem como instruir e incentivar os crentes e desempenharem o seu ministério
pessoal e comunitário. A placa de uma igreja dizia o seguinte: “Pastor: Rev.
tal; Ministros: todos os membros”.
e) O sacerdócio universal dos crentes
corre o risco de tornar-se mera teoria em muitas igrejas evangélicas. Sempre
que os pastores exercem suas funções com excesso de autoridade (1 Pedro 5.1-3),
insistindo na distância que os separa da comunidade, relutando em descer do
pedestal em que se encontram, concentrando todas as atividades de liderança e
não sabendo delegar responsabilidades às suas ovelhas, tornando as suas igrejas
excessivamente dependentes de sua orientação e liderança, não dando
oportunidades para que as pessoas exerçam os dons e aptidões que o Senhor lhes
tem concedido, há um retorno ao sacerdotalismo medieval contra o qual Lutero e
os demais reformadores se insurgiram.
Que o Senhor nos dê a graça de
valorizarmos e praticarmos fielmente o princípio bíblico do sacerdócio de todos
os crentes, redescoberto pelos reformadores do século XVI. Dessa maneira,
seguindo a verdade em amor, cresceremos “em tudo naquele que é o cabeça,
Cristo, de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda
junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento
para a edificação de si mesmo em amor” (Ef 4.15s)".