quinta-feira, 25 de junho de 2020

SOBRE OS 109 ANOS DA IGREJA ASSEMBLEIA DE DEUS E A CRÍTICA DO PR. MARCOS GRANCONATO


A Igreja Evangélica Assembleia de Deus completou 109 anos no dia 18 de junho de 2020. Nesse período ela se tornou a maior denominação evangélica do Brasil. Juntamente com a Congregação Cristã do Brasil, foram as primeiras igrejas pentecostais brasileiras.

Mas aí, justamente no dia em que as Assembleias de Deus comemoraram 109 anos de sua fundação no Brasil, deparei, nas redes sociais, com uma das críticas mais indignas e reprováveis que li, em toda a minha vida, sobre a igreja em que sou membro desde o dia 13 de dezembro de 1981, e que tenho a honra de servir como pastor.
Reproduzo a crítica abaixo:

“109 ANOS!
Fraudes, heresias, desvios, escândalos, regrinhas tolas, ignorância doutrinária, sermões vazios, brigas políticas, perseguição aos crentes sérios, divisões, cultos baderneiros, línguas falsas, profecias inventadas, curas mentirosas, ataques à ortodoxia, infiltração desonesta em igrejas sérias, pastores despreparados, superstições… Não há muito que comemorar!”

Granconato, que se tornou conhecido nas redes sociais justamente por seus ataques ao pentecostalismo – não simplesmente àqueles erros doutrinários e práticos que os pentecostais clássicos também criticam entre os “neopentecostais”, como teologia da prosperidade, misticismo, meninice ou fogo estranho, fetichismo, legalismo judaizante, personalismo, marketing religioso, quebra de maldições, movimento G12, hipervalorização da ação demoníaca, adoração extravagante…

O que o Sr. Granconato repele é a própria manifestação dos dons espirituais, que são bíblicos, mas pelo visto não tem condições pessoais de discernir em relação às manifestações carnais ou diabólicas.

Além disso, o indigitado antipentecostal despreza o exercício apologético assembleiano, bem como a literatura de nossa editora oficial, nossas tradicionais revistas de escola bíblica, o Mensageiro da Paz (órgão oficial da CGADB, mas durante décadas foi de toda a denominação), os teólogos assembleianos de relevo, os frutos missionários, e, enfim, o próprio fato de que, se hoje existe um grande contingente de evangélicos no Brasil, isto se deve a uma configuração histórica na qual o Espírito Santo impulsionou homens e mulheres simples a pregarem o Evangelho, dizendo, muitas vezes com dificuldade de expressão, que “Jesus Cristo salva, cura, batiza com o Espírito Santo e em breve voltará”.

A ocasião escolhida para tamanho ataque não poderia ter sido pior: justamente quando milhões e milhões de assembleianos brasileiros comemoram mais de um século de uma igreja grande, espalhada em todo o território nacional, presente nas periferias, fruto de um ingente esforço missionário, militante, evangelizadora, promotora do trabalho leigo, digo, justamente nesse momento especial um conhecido antipentecostal se levanta para escrever um ataque gratuito, descompromissado com a comunhão no reino de Deus, reducionista e historicamente manco.

O mais grave é que se trata de uma pessoa que aparentemente tem conhecimento da história da Igreja, o que lhe retira a possibilidade de se ocultar por trás da ignorância.
Agora, não significa que estamos dizendo que ela é a denominação perfeita e que não precisamos fazer nossa auto-crítica. Temos desafios e problemas para resolver. Só para dar alguns exemplos: Brigas pelo poder eclesiástico; pregações superficiais; legalismo x mito da piedade; falta de ensino sistemático sobre os dons espirituais, cuja ausência pode comprometer a herança pentecostal; envolvimento com a política partidária.

Nesses 109 anos, o mundo mudou, o Brasil mudou e as igrejas também mudaram. Algumas mudanças vieram para melhor e outras nem tanto. No início, não havia representação política, porque a igreja sob a ótica pré-milenista, dizia que Jesus voltaria logo, então tinham que ganhar almas, porque a Vinda do Senhor logo ocorreria. A denominação considerada conservadora, durante anos proibiu o uso do aparelho de rádio entre os seus membros, ocorrendo o mesmo depois com a televisão.

Hoje, a igreja tem representação política, busca ter presença midiática, vem procurando flexibilizar alguns usos e costumes e contextualizar a linha litúrgica. A denominação é representada por três Convenções nacionais: a CGADB, CONAMAD e a CADB.

O pentecostalismo alastrou-se como uma das mais expressivas forças da cristandade no século 20, exatamente por não ser um movimento de teólogos. A experiência com Deus ganhou força conclusiva, obrigando a razão moderna a se dobrar diante da percepção intuitiva, muitas vezes sensorial, que aquecia o coração. Como o pentecostalismo transferiu a fé para a emoção, a vitalidade da igreja, é garantida na celebração da vida dignificada.

Os pentecostais afirmam que a experiência com Deus, o encontro místico, transforma. O êxtase pentecostal, tão mal compreendido pelos tradicionais, expressa significados que fogem à razão. A presença de Deus é fonte de vida e de sentido. Destes encontros, o servente da construção civil, a empregada doméstica, o subempregado, se descobrem eleitos de Deus. Cada pessoa capacitada pelo Espírito “sai pelo mundo como mensageira do Senhor”. Anuncia que todos podem ter seus nomes no livro da vida. O batismo no Espírito Santo desperta competência, agilidade e paixão.

Outra coisa, justamente em tempos onde se fala em luta contra o racismo, um fato muito importante nesse assunto foi de que a AD foi dentro do protestantismo brasileiro talvez a igreja que mais tinha membros e pastores negros no Brasil, durante muitos anos.

Infelizmente, a teologia da prosperidade aburguesou o movimento. Desfigurado, estou certo que os pioneiros pentecostais nunca pactuariam com a mensagem que gere cobiça. Aliás, denunciariam que o mundo entrou na igreja e que os pentecostais precisam ser renovados.

Mas mesmo assim, comemoremos apesar das críticas, os 109 anos da AD no Brasil, é fruto do trabalho de muitas pessoas cujos nomes estão nos livros de história da denominação pelo trabalho que fizeram: pastores, líderes.Mas existem muitos outros, que são anônimos, que pregaram debaixo de árvores, levaram bíblias, harpas cristãs em suas bicicletas ou a pé, em barcos por esses rincões afora, pregando a palavra, cujos nomes com certeza estão nos livros de Deus nos céus. Assim eu digo:
“Parabéns Assembléia de Deus!”


terça-feira, 23 de junho de 2020

Bispos e pastores da Universal em Angola tomam controle de templos e rompem com direção brasileira

Gilberto Nascimento - De São Paulo para a BBC News Brasil
BBC News Brasil
A Universal é liderada pelo bispo brasileiro Edir Macedo e está presente hoje em mais de 95 países
A Universal é liderada pelo bispo brasileiro Edir Macedo e está presente hoje em mais de 95 países
Um grupo de bispos e pastores da Igreja Universal do Reino de Deus em Angola informou ter assumido na segunda-feira (22/6) o controle de 35 templos da instituição em Luanda e cerca de 50 em outras províncias do país, como Lunda-Norte, Huambo, Benguela, Malanje e Cafunfo.
A Universal é liderada pelo bispo brasileiro Edir Macedo e está presente hoje em mais de 95 países, com cerca de 10 mil templos. Tem 500 mil fiéis em Angola.
Os religiosos angolanos declararam ruptura com a gestão brasileira. É um movimento sem precedentes, que começou em novembro de 2019, com a divulgação de um manifesto com críticas à direção brasileira da igreja.


O controle da Universal em Angola será assumido agora, segundo o grupo rebelado, pelo bispo Valente Bezerra Luiz, então vice-presidente da igreja.
Eles dizem que a igreja no país passará a ser chamada de Igreja Universal de Angola. Os dissidentes dizem já ter o comando de 42% dos templos.
Procurada pela BBC News Brasil nesta segunda-feira (22), a Universal não respondeu aos pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem.

Acusações

Os bispos e pastores angolanos acusam a direção brasileira da igreja de evasão de divisas, expatriação ilícita de capital, racismo, discriminação, abuso de autoridade, imposição da prática de vasectomia aos pastores e intromissão na vida conjugal dos religiosos.
Reclamam ainda de privilégios dados aos bispos brasileiros e pediam uma maior valorização do episcopado angolano.
O manifesto elaborado em novembro — com a assinatura de 320 bispos e pastores —, foi encaminhado ao principal líder da igreja no país, o bispo brasileiro Honorilton Gonçalves, ex-vice-presidente da TV Record.
Os religiosos dizem não ter sido atendidos. No manifesto, já pediam aos líderes brasileiros da igreja que deixassem o país para que a instituição passasse a ser administrada apenas por angolanos.
Dinis Bundo, identificado como obreiro da Universal e porta-voz do grupo rebelado, reclamou das benesses aos religiosos brasileiros.
Segundo ele, as melhores igrejas sempre foram designadas aos brasileiros, que seriam beneficiados também com bons salários e carros modernos.

Resistência

Igreja Universal do Reino de Deus iniciou suas operações em Angola em 1992 e tem mais de 230 templos no país
Igreja Universal do Reino de Deus iniciou suas operações em Angola em 1992 e tem mais de 230 templos no país
Bundo informou que, além das 35 igrejas em Luanda, os manifestantes passaram a controlar 18 igrejas em Benguela, 14 em Malanje, 10 em Huambo e 8 em Luanda-Norte.
O grupo tomou o controle também da Catedral do Morro Bento e do Cenáculo do Patriota, principais centros religiosos da instituição em Luanda.
Em alguns templos houve resistência. Os religiosos angolanos tomaram as chaves dos estabelecimentos e, em meio a discussões e empurrões, os responsáveis até aquele momento foram expulsos.
Em nota divulgada à imprensa, o corpo de pastores denunciou "atos de arbitrariedades" que estariam sendo praticados pela direção da Universal em Angola.
O bispo Honorilton Gonçalves, segundo a nota, estaria perseguindo, punindo e intimidando bispos e pastores angolanos.
Além da vasectomia imposta a pastores, mulheres dos religiosos estariam sendo obrigadas a abortar, conforme a nota.
Entre outras queixas dos religiosos, o documento denuncia ainda a "falsificação de ata de eleição de órgãos sociais da IURD", emissão de procurações com plenos poderes a cidadãos brasileiros para exercer atos reservados à assembleia geral, proibição às mulheres de pastores de terem acesso à formação acadêmica-científica e técnico-profissional, irregularidades no pagamento de segurança social dos pastores e falta de projeto de desenvolvimento pastoral em formação teológica específica.

Pesquisador explica o conceito de guerra cultural do bolsonarismo e faz citação aos evangélicos


O êxito do bolsonarismo, com sua paixão mobilizadora nas redes sociais e nas ruas, invibiliza o governo Jair Bolsonaro, diagnostica o professor João Cezar de Castro Rocha, pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Apoiadora segura pintura com o rosto do presidente Jair Bolsonaro em manifestação em Brasília
Apoiadora segura pintura com o rosto do presidente Jair Bolsonaro em manifestação em Brasília
Foto: Adriano Machado / Reuters

Titular de Literatura Comparada na instituição, ele aponta o paradoxo do discurso bolsonarista no livro "Guerra cultural e retórica do ódio (Crônicas do Brasil)", que lançará em julho. Destaca a necessidade dos seguidores do presidente (e dele próprio) de ter, o tempo todo, inimigos a combater, um fator que, prevê, levará a administração ao colapso. Isso estaria evidente no combate à covid-19, avalia, e já desgasta o presidente, por colocar a população diante de fatos concretos, como doença e óbitos em massa.

"Com a presença de uma peste, nós, seres humanos, temos um encontro marcado com aquilo que não queremos jamais encontrar, que é a finitude, a morte. É muito claro: a morte não é um meme, e a vida não se reduz à disputa de narrativas", afirmou, em entrevista ao Estadão.

Em seu livro, Castro Rocha defende que, para manter a polarização que o elegeu, Bolsonaro e seus seguidores recorrem a uma versão brasileira da guerra cultural. Ela teria peculiaridades em relação ao conceito cunhado pelo sociólogo norte-americano James Davison Hunter, nos anos 90 do século passado. Enquanto nos Estados Unidos a ideia envolvia a polarização entre conservadores e liberais sobre temas como aborto, porte de armas, aquecimento global, imigração, Estado laico, a extrema direita brasileira recorre a três elementos locais para montar uma ideologia. 

São eles a Doutrina de Segurança Nacional que embasou a ditadura de 1964-1985; o Orvil, livro produzido pelos militares com sua versão para aqueles anos; e o que chamou de "Sistema de Crenças Olavo de Carvalho", com opiniões do escritor. "Um sistema de crenças não pode ser combatido racionalmente", disse o professor.

Para ele, a prisão de Fabrício Queiroz, com a possibilidade de comprovação de crimes ligados ao clã, tende a abalar o apoio a Bolsonaro. Não será capaz , porém, de afastar seus seguidores mais extremados, analisa. A seguir, as declarações do professor ao Estadão.

O senhor se refere em seu livro a uma forma brasileira de guerra cultural, diferente da norte-americana, que estaria sendo empreendida pelo governo Bolsonaro. O que é isso?
Em nenhuma circunstância estou negando que a guerra cultural bolsonarista lance mão de diversos recursos utilizados sobretudo pela extrema-direita norte-americana. A relação muito próxima, por exemplo, entre Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon torna isso evidente. De algum modo, a campanha eleitoral e a maneira de governo de Jair Bolsonaro são muito calcadas nas técnicas desenvolvidas pelo Steve Bannon e que, no primeiro momento, foram adotadas pelo Donald Trump. Quero dizer o seguinte: não estou negando que seja possível fazer um estudo da guerra cultural bolsonarista que valorize a proximidade de tudo que o governo Bolsonaro realiza e que pode ser encontrado em governos da Turquia, da Hungria. E, do ponto de vista cultural, com todas as técnicas de utilização de Whats App e das redes sociais, que caracteriza o avanço da extrema direita no mundo inteiro. Há uma dimensão na guerra cultural bolsonarista que não é brasileira, está claro?

Mas o que distingue o caso brasileiro?
No meu livro, eu estou me dedicando a fazer algo que, salvo melhor juízo, não foi feito. É um estudo específico da mentalidade bolsonarista em relação a três elementos que, esses sim, são propriamente brasileiros. São três elementos que proponho, e eles se relacionam. E se relacionam com um quarto elemento que não foi planejado, mas tem uma força tremenda e que provavelmente podemos dizer que elegeu Bolsonaro.

Quais são?
Então vamos lá. Em primeiro lugar uma surpreendente tradução da Doutrina de Segurança Nacional para tempos de democracia. A Doutrina de Segurança Nacional não é brasileira, foi desenvolvida na Guerra Fria. No Brasil, foi aperfeiçoada durante a ditadura militar e conheceu três legislações. A primeira delas, foi a Lei de Segurança Nacional de 67, que já era uma lei muito forte, mas não se comparava à Lei de Segurança Nacional de 1969, que permaneceu até 1983. Se você for ao site do Senado e baixar a Lei de Segurança Nacional, vai lê-la em 20 minutos. Você imagina, na Lei de Segurança Nacional de 1969, quantas vezes aparece o substantivo morte? Trinta e duas. Restabeleceu a pena de morte. Em três artigos, a pena mínima era prisão perpétua, a máxima, pena de morte. Essa lei foi revogada em 1983, ainda no governo Figueiredo. E a lei com que contamos hoje é a de 1983. Uma vez que o inimigo interno é identificado, a Doutrina de Segurança Nacional é muito clara: é preciso eliminá-lo - ponto. Eliminação do inimigo interno… Toda a mentalidade bolsonarista é essa. Como, em tempos democráticos, você não pode eliminar as pessoas fisicamente, todo o governo Bolsonaro é voltado para a destruição das instituições nas quais a mentalidade bolso-olavista acredita que estão os inimigos. Ou seja, as instituições da cultura, da educação, da ciência, do meio ambiente, dos direitos humanos e da cidadania.

Que mais?
O segundo eixo é algo surpreendente. A chave interpretativa é um projeto do Exército chamado Orvil, que quer dizer livro ao inverso. Foi um projeto desenvolvido, de forma secreta, entre 1986 e 1989, sob a liderança do ministro do Exército na época do (presidente) José Sarney, Leônidas Pires Gonçalves. E pretendia ser uma resposta, simetricamente invertida, ao livro Brasil: Nunca Mais, de 1985. Porque o livro Brasil Nunca Mais, com material obtido no Superior Tribunal Militar, trazia uma série de depoimentos colhidos nos autos dos processos, de pessoas que diziam aos militares que os estavam julgando: fui torturado em tais e quais condições. Como é que o Orvil responde a isso? Argumentando que os grupos armados de esquerda especialmente entre 1967 e 1974 cometeram crimes. Quando você escuta os discursos amalucados, os discursos pouco sensatos, do Carlos Bolsonaro, da família Bolsonaro, de que os governadores estão tentando implantar uma ditadura comunista chinesa no Brasil, você diz: é uma loucura. Não, não...

Por quê?
Essa é a matriz narrativa do Orvil, que diz que de 1922 até 1989 - e você pode projetar para 2020, que é o caso da mentalidade bolsonarista- , não se passou nem um dia no qual o movimento comunista internacional não estivesse tramando uma intriga de proporções vastas para transformação de um território de dimensões continentais, o Brasil, em uma China tropical. Isso está escrito no Orvil. O subtítulo do livro é tentativas de tomada do poder. Houve (segundo o livro) quatro tentativas. A primeira acontece entre 1922 e 1954 e fracassada Intentona Comunista de 1935 até a radicalização política com (Getúlio) Vargas. Fracassa porque o exército vence militarmente. De 1954 a 1964 é a segunda tentativa de tomada do poder, que fracassa especialmente entre 61 e 64, com a radicalização após a renúncia do Jânio, a assunção do João Goulart etc. De 1967/68 a 1974 é a tentativa através da esquerda armada, os grupos de guerrilha urbana, sobretudo, derrotados militarmente. Então (de acordo com o Orvil) a esquerda faz uma autocrítica e decide mudar de estratégia. Em lugar de recorrer às armas, a esquerda principiará a fazer uma infiltração em todas as instituições. A esquerda (de acordo com essa visão) começou a se infiltrar na imprensa, na televisão, em todos os meios da cultura e sobretudo nas universidades e na educação como um todo. Com a finalidade de fazer com que a Revolução ocorresse não pelo atrito das armas mas pelo convencimento dos corações e mentes. Mas para que serve esse discurso? Aqui as duas pontas se atam. A Doutrina de Segurança Nacional prevê a identificação do inimigo interno para a sua eliminação. Tudo é válido porque o inimigo é o comunista. O comunista terrível, o comunismo que suprimirá as liberdades. O que permite aos bolsonaristas, em 2020, lançar mão de um silogismo absurdo: para restaurar a liberdade, intervenção militar.

E o terceiro elemento ao qual o senhor se referiu?
O terceiro elemento é o que eu chamo no livro de sistema de crenças Olavo de Carvalho. Porque a pergunta é uma só: como foi que essas idéias se difundiram? Difundiram-se porque desde a década de 1990 o Olavo de Carvalho principiou uma pregação que, de uma certa forma, tornou a matriz narrativa do Orvil muito mais sofisticada. Mas, em última instância, quando você se dá conta da matriz ativista do Olavo de Carvalho, é a mesma do Orvil: se existe comunista, ele precisa ser eliminado, porque com o comunista não se pode dialogar, porque essencialmente todo comunista é dominado por uma absoluta falta de caráter. Quando você monta o Sistema de Crenças Olavo de Carvalho, você tem: "analfabetismo funcional"; "desonestidade intelectual"; "comunista tem de ser eliminado"; "existe uma vasta conspiração internacional chamada globalismo para retirar a autonomia das nações"; "existe uma vasta conspiração no Brasil para hegemonia total e doutrinação da esquerda de modo tal que a leitura do Antonio Gramsci permitiu dominar corações e mentes sem que nem soubessem que estavam sendo dominados"... Um sistema de crenças não pode ser combatido racionalmente. Não adianta eu perder o meu tempo explicando para as pessoas que os dados estão equivocados e que as interpretações, por isso, são delirantes. Quanto mais você ataca um sistema de crenças desde o seu exterior mais ele se fortalece internamente.

E qual seria o quarto elemento?
Houve uma coincidência inesperada entre esse tripé - Doutrina de Segurança Nacional, Orvil/anticomunismo, Sistema de Crenças Olavo de Carvalho - e os evangélicos no Brasil. A mentalidade neopentecostal é agônica, bélica e enxerga o dia a dia como uma batalha entre o bem que se deve alcançar e o mal que nos persegue. Ora, você liga qualquer programa neopentecostal (na televisão). Nesses programas, o princípio do qual se parte é que a vida nesta Terra é uma batalha constante entre ele, o Diabo, Diabo mesmo, Satanás, e nós. E a narrativa é sempre a mesma. Há uma queda provocada por ele, Satanás, que nos atormenta. E há uma redenção. A redenção é dada pela força da palavra de Deus. Você viu o vídeo em que o Silas Malafaia, logo depois da eleição, fazia uma espécie apresentação do Jair Bolsonaro ao templo? Para mim e para você, pareceria uma humilhação. Para os 40 milhões de evangélicos não é. É uma consagração. É que Bolsonaro, que não dispunha de dinheiro, não dispunha de estrutura partidária, que era isolado, que era sozinho, venceu. Por quê? Só tem uma explicação (para os evangélicos), uma espécie de Teologia da Prosperidade aplicada a política. Ele venceu porque é ungido de Deus. Sabe quantos votos Bolsonaro teve entre evangélicos? Vinte e um milhões.

A combinação desses quatro elementos explica a resiliência do bolsonarismo, mesmo em um governo que parece mais empenhado em conflitos do que em governar?
Tem um paradoxo, e isso é bem importante. A guerra cultural bolsonarista permitiu o êxito realmente surpreendente, pela força do bolsonarismo. Então, a guerra cultural bolsonarista assegurou ao bolsonarismo uma força que o Bolsonaro nunca teve. Agora, há uma armadilha nisso. É que a guerra cultural bolsonarista assegura o êxito incomum do bolsonarismo como movimento político capaz de causar paixão mobilizadora, e, ao mesmo tempo, não permite que haja governo. Porque não há guerra cultural bolsonarista sem a invenção, em série, de inimigos. É uma ironia perversa. Desde que o governo começou, faça uma cronologia dos bodes expiatórios. Começou lá atrás com Gustavo Bebbiano, terminou agora com Sérgio Moro.

Então a guerra cultural é o objetivo do governo?
A guerra cultural é o eixo do governo. Por isso mesmo, a guerra cultural não deixa que haja governo. Esse é o paradoxo. Este governo vai entrar em colapso administrativo. A guerra cultural assegura o êxito do bolsonarismo e impossibilita a ação do governo.

Isso explica a ação, ou não-ação, do governo as pandemia?
Justamente, exatamente. Eu não estou dizendo isso de maneira metafórica, estou dizendo de maneira concreta. O que está acontecendo agora na pandemia é desastroso. Estamos falando de uma quantidade inimaginável de pessoas neste País que não precisavam morrer. Não era necessário. Mas qual é a atitude de Bolsonaro? O Bolsonaro nunca foi, pelo menos nunca vimos, visitando um hospital para prestar solidariedade às famílias e para agradecer aos profissionais de saúde. Já vimos isso? Mas vimos o Bolsonaro, nas suas lives, receitar remédio! Em lugar de administrar a crise, de vislumbrar um futuro difícil e se antecipar a ele, o Bolsonaro gasta o tempo inteiro criando inimigos políticos. Ou seja: o que temos é bolsonarismo em excesso para governo em absoluta ausência. Não temos governo, e não teremos governo enquanto durar a guerra cultural bolsonarista.

O senhor cogitou que os grupos digitais bolsonaristas ficariam mais extremistas, não?
Estão ficando. E não somente isso, as milícias digitais estão indo para as ruas. O caso absurdo deste grupo dos 300… Aqui a coisa fica séria. Na minha hipótese original, antes do surto desta peste, eu imaginava que o Brasil seguiria até 2022 em uma disputa insana de narrativas. Mas, com a presença de uma peste, nós, seres humanos, temos um encontro marcado com aquilo que não queremos jamais encontrar, que é a finitude, a morte. É muito claro: a morte não é um meme, e e vida não se reduz à disputa de narrativas. Então, infelizmente, esta peste nos confronta com a necessidade de observar com cuidado dados objetivos da realidade. Diante de uma peste, diante da morte, não temos o direito de brincar de disputas narrativas. Os índices de rejeição do Bolsonaro aumentarão bastante, e as perspectivas não são muito boas. Porque não se trata apenas da queda de um presidente. Isso já aconteceu entre nós: Fernando Collor, Dilma Rousseff. Não se trata do final melancólico de uma presidência - já ocorreu conosco, Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um presidente cujos filhos enfrentam sérios problemas na Justiça. Bolsonaro terá uma resistência enorme a reconhecer o término do seu governo. Porque o que está envolvido, para ele, em última instância, não é o Brasil, não é projeto de Brasil. O que está envolvido é a defesa da família. Precisamos considerar que esse grupo dos 300, que eram 30… Temos de resistir à tentação de reduzi-los à caricatura. São o embrião de algo muito perigoso, que é a formação de milícias paramilitares. As polícias militares têm uma forte inclinação bolsonarista. Haverá um recrudescimento muito grande da tensão, porque quando a peste… Eu prefiro falar peste, para que as pessoas compreendam. Então, a peste, quando estiver controlada, a economia estará em uma recessão profunda, muito provavelmente, pelas projeções, será a mais séria recessão da história brasileira, superior aos dois PIBs negativos do governo Dilma Rousseff em 2014 e 2015, o desemprego aumentará muito, o que significa que a tensão social estará em uma escala muito alta. Nesse momento, o governo Bolsonaro estará provavelmente em desintegração acelerada, ficará cada vez mais claro, a não ser para os apoiadores fanáticos, que o bolsonarismo, quanto mais é exitoso, mais fracassado é o governo do Bolsonaro. Nunca vimos qual seria o projeto do Bolsonaro para o País. Nunca houve uma apresentação formal. O governo Bolsonaro é uma arquitetura da destruição. Por volta de setembro, outubro, acho que vamos estar em uma situação como há décadas não imaginávamos que poderíamos viver.

Qual deverá ser o efeito sobre o bolsonarismo da prisão de Fabrício Queiroz, em um caso que envolve um dos filhos do presidente?
A prisão do Queiroz e seus desdobramentos deverão acelerar a distinção entre apoiadores e eventuais eleitores de Bolsonaro. Estes últimos votaram menos no capitão e muito mais contra o PT. Eles certamente abandonarão, se já não abandonaram o barco, se a corrupção bolsonarista for comprovada. Por outro lado, os apoiadores, imagino que 15%, talvez 20% dos 57 milhões de votos de Bolsonaro, tendem a negar qualquer evidência e permanecer fiéis ao bolsonarismo.