O êxito do
bolsonarismo, com sua paixão mobilizadora nas redes sociais e nas ruas,
invibiliza o governo Jair Bolsonaro, diagnostica o professor João Cezar de
Castro Rocha, pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Apoiadora segura
pintura com o rosto do presidente Jair Bolsonaro em manifestação em Brasília
Foto: Adriano
Machado / Reuters
Titular de
Literatura Comparada na instituição, ele aponta o paradoxo do discurso
bolsonarista no livro "Guerra cultural e retórica do ódio (Crônicas do
Brasil)", que lançará em julho. Destaca a necessidade dos seguidores do
presidente (e dele próprio) de ter, o tempo todo, inimigos a combater, um fator
que, prevê, levará a administração ao colapso. Isso estaria evidente no combate
à covid-19, avalia, e já desgasta o presidente, por colocar a população diante
de fatos concretos, como doença e óbitos em massa.
"Com a
presença de uma peste, nós, seres humanos, temos um encontro marcado com aquilo
que não queremos jamais encontrar, que é a finitude, a morte. É muito claro: a
morte não é um meme, e a vida não se reduz à disputa de narrativas",
afirmou, em entrevista ao Estadão.
Em seu livro,
Castro Rocha defende que, para manter a polarização que o elegeu, Bolsonaro e
seus seguidores recorrem a uma versão brasileira da guerra cultural. Ela teria
peculiaridades em relação ao conceito cunhado pelo sociólogo norte-americano James Davison
Hunter, nos anos 90 do século passado. Enquanto nos Estados Unidos a ideia
envolvia a polarização entre conservadores e liberais sobre temas como aborto,
porte de armas, aquecimento global, imigração, Estado laico, a extrema direita
brasileira recorre a três elementos locais para montar uma ideologia.
São eles
a Doutrina de Segurança Nacional que embasou a ditadura de 1964-1985; o Orvil,
livro produzido pelos militares com sua versão para aqueles anos; e o que
chamou de "Sistema de Crenças Olavo de Carvalho", com opiniões do
escritor. "Um sistema de crenças não pode ser combatido
racionalmente", disse o professor.
Para ele, a prisão
de Fabrício Queiroz, com a possibilidade de comprovação de crimes ligados ao
clã, tende a abalar o apoio a Bolsonaro. Não será capaz , porém, de afastar
seus seguidores mais extremados, analisa. A seguir, as declarações do professor
ao Estadão.
O senhor se refere em seu livro a uma forma brasileira de guerra
cultural, diferente da norte-americana, que estaria sendo empreendida pelo
governo Bolsonaro. O que é isso?
Em nenhuma
circunstância estou negando que a guerra cultural bolsonarista lance mão de
diversos recursos utilizados sobretudo pela extrema-direita norte-americana. A
relação muito próxima, por exemplo, entre Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon
torna isso evidente. De algum modo, a campanha eleitoral e a maneira de governo
de Jair Bolsonaro são muito calcadas nas técnicas desenvolvidas pelo Steve
Bannon e que, no primeiro momento, foram adotadas pelo Donald Trump. Quero
dizer o seguinte: não estou negando que seja possível fazer um estudo da guerra
cultural bolsonarista que valorize a proximidade de tudo que o governo
Bolsonaro realiza e que pode ser encontrado em governos da Turquia, da Hungria.
E, do ponto de vista cultural, com todas as técnicas de utilização de Whats App
e das redes sociais, que caracteriza o avanço da extrema direita no mundo
inteiro. Há uma dimensão na guerra cultural bolsonarista que não é brasileira,
está claro?
Mas o que distingue o caso brasileiro?
No meu livro, eu
estou me dedicando a fazer algo que, salvo melhor juízo, não foi feito. É um
estudo específico da mentalidade bolsonarista em relação a três elementos que,
esses sim, são propriamente brasileiros. São três elementos que proponho, e
eles se relacionam. E se relacionam com um quarto elemento que não foi
planejado, mas tem uma força tremenda e que provavelmente podemos dizer que
elegeu Bolsonaro.
Quais são?
Então vamos lá. Em
primeiro lugar uma surpreendente tradução da Doutrina de Segurança Nacional
para tempos de democracia. A Doutrina de Segurança Nacional não é brasileira,
foi desenvolvida na Guerra Fria. No Brasil, foi aperfeiçoada durante a ditadura
militar e conheceu três legislações. A primeira delas, foi a Lei de Segurança
Nacional de 67, que já era uma lei muito forte, mas não se comparava à Lei de
Segurança Nacional de 1969, que permaneceu até 1983. Se você for ao site do
Senado e baixar a Lei de Segurança Nacional, vai lê-la em 20 minutos. Você
imagina, na Lei de Segurança Nacional de 1969, quantas vezes aparece o
substantivo morte? Trinta e duas. Restabeleceu a pena de morte. Em três
artigos, a pena mínima era prisão perpétua, a máxima, pena de morte. Essa lei
foi revogada em 1983, ainda no governo Figueiredo. E a lei com que contamos
hoje é a de 1983. Uma vez que o inimigo interno é identificado, a Doutrina de
Segurança Nacional é muito clara: é preciso eliminá-lo - ponto. Eliminação do
inimigo interno… Toda a mentalidade bolsonarista é essa. Como, em tempos
democráticos, você não pode eliminar as pessoas fisicamente, todo o governo
Bolsonaro é voltado para a destruição das instituições nas quais a mentalidade
bolso-olavista acredita que estão os inimigos. Ou seja, as instituições da
cultura, da educação, da ciência, do meio ambiente, dos direitos humanos e da
cidadania.
Que mais?
O segundo eixo é
algo surpreendente. A chave interpretativa é um projeto do Exército chamado
Orvil, que quer dizer livro ao inverso. Foi um projeto desenvolvido, de forma
secreta, entre 1986 e 1989, sob a liderança do ministro do Exército na época do
(presidente) José Sarney, Leônidas Pires Gonçalves. E pretendia ser uma
resposta, simetricamente invertida, ao livro Brasil: Nunca Mais, de 1985.
Porque o livro Brasil Nunca Mais, com material obtido no Superior Tribunal
Militar, trazia uma série de depoimentos colhidos nos autos dos processos, de
pessoas que diziam aos militares que os estavam julgando: fui torturado em tais
e quais condições. Como é que o Orvil responde a isso? Argumentando que os
grupos armados de esquerda especialmente entre 1967 e 1974 cometeram crimes.
Quando você escuta os discursos amalucados, os discursos pouco sensatos, do
Carlos Bolsonaro, da família Bolsonaro, de que os governadores estão tentando
implantar uma ditadura comunista chinesa no Brasil, você diz: é uma loucura.
Não, não...
Por quê?
Essa é a matriz
narrativa do Orvil, que diz que de 1922 até 1989 - e você pode projetar para
2020, que é o caso da mentalidade bolsonarista- , não se passou nem um dia no
qual o movimento comunista internacional não estivesse tramando uma intriga de
proporções vastas para transformação de um território de dimensões
continentais, o Brasil, em uma China tropical. Isso está escrito no Orvil. O
subtítulo do livro é tentativas de tomada do poder. Houve (segundo o livro)
quatro tentativas. A primeira acontece entre 1922 e 1954 e fracassada Intentona
Comunista de 1935 até a radicalização política com (Getúlio) Vargas. Fracassa porque
o exército vence militarmente. De 1954 a 1964 é a segunda tentativa de tomada
do poder, que fracassa especialmente entre 61 e 64, com a radicalização após a
renúncia do Jânio, a assunção do João Goulart etc. De 1967/68 a 1974 é a
tentativa através da esquerda armada, os grupos de guerrilha urbana, sobretudo,
derrotados militarmente. Então (de acordo com o Orvil) a esquerda faz uma
autocrítica e decide mudar de estratégia. Em lugar de recorrer às armas, a
esquerda principiará a fazer uma infiltração em todas as instituições. A
esquerda (de acordo com essa visão) começou a se infiltrar na imprensa, na
televisão, em todos os meios da cultura e sobretudo nas universidades e na
educação como um todo. Com a finalidade de fazer com que a Revolução ocorresse
não pelo atrito das armas mas pelo convencimento dos corações e mentes. Mas
para que serve esse discurso? Aqui as duas pontas se atam. A Doutrina de
Segurança Nacional prevê a identificação do inimigo interno para a sua
eliminação. Tudo é válido porque o inimigo é o comunista. O comunista terrível,
o comunismo que suprimirá as liberdades. O que permite aos bolsonaristas, em
2020, lançar mão de um silogismo absurdo: para restaurar a liberdade,
intervenção militar.
E o terceiro elemento ao qual o senhor se referiu?
O terceiro elemento
é o que eu chamo no livro de sistema de crenças Olavo de Carvalho. Porque a
pergunta é uma só: como foi que essas idéias se difundiram? Difundiram-se
porque desde a década de 1990 o Olavo de Carvalho principiou uma pregação que,
de uma certa forma, tornou a matriz narrativa do Orvil muito mais sofisticada.
Mas, em última instância, quando você se dá conta da matriz ativista do Olavo
de Carvalho, é a mesma do Orvil: se existe comunista, ele precisa ser
eliminado, porque com o comunista não se pode dialogar, porque essencialmente
todo comunista é dominado por uma absoluta falta de caráter. Quando você monta
o Sistema de Crenças Olavo de Carvalho, você tem: "analfabetismo
funcional"; "desonestidade intelectual"; "comunista tem de
ser eliminado"; "existe uma vasta conspiração internacional chamada
globalismo para retirar a autonomia das nações"; "existe uma vasta
conspiração no Brasil para hegemonia total e doutrinação da esquerda de modo
tal que a leitura do Antonio Gramsci permitiu dominar corações e mentes sem que
nem soubessem que estavam sendo dominados"... Um sistema de crenças não
pode ser combatido racionalmente. Não adianta eu perder o meu tempo explicando
para as pessoas que os dados estão equivocados e que as interpretações, por
isso, são delirantes. Quanto mais você ataca um sistema de crenças desde o seu
exterior mais ele se fortalece internamente.
E qual seria o quarto elemento?
Houve uma
coincidência inesperada entre esse tripé - Doutrina de Segurança Nacional,
Orvil/anticomunismo, Sistema de Crenças Olavo de Carvalho - e os evangélicos no
Brasil. A mentalidade neopentecostal é agônica, bélica e enxerga o dia a dia
como uma batalha entre o bem que se deve alcançar e o mal que nos persegue.
Ora, você liga qualquer programa neopentecostal (na televisão). Nesses
programas, o princípio do qual se parte é que a vida nesta Terra é uma batalha
constante entre ele, o Diabo, Diabo mesmo, Satanás, e nós. E a narrativa é
sempre a mesma. Há uma queda provocada por ele, Satanás, que nos atormenta. E
há uma redenção. A redenção é dada pela força da palavra de Deus. Você viu o
vídeo em que o Silas Malafaia, logo depois da eleição, fazia uma espécie
apresentação do Jair Bolsonaro ao templo? Para mim e para você, pareceria uma
humilhação. Para os 40 milhões de evangélicos não é. É uma consagração. É que
Bolsonaro, que não dispunha de dinheiro, não dispunha de estrutura partidária,
que era isolado, que era sozinho, venceu. Por quê? Só tem uma explicação (para
os evangélicos), uma espécie de Teologia da Prosperidade aplicada a política.
Ele venceu porque é ungido de Deus. Sabe quantos votos Bolsonaro teve entre
evangélicos? Vinte e um milhões.
A combinação desses quatro elementos explica a resiliência do
bolsonarismo, mesmo em um governo que parece mais empenhado em conflitos do que
em governar?
Tem um paradoxo, e
isso é bem importante. A guerra cultural bolsonarista permitiu o êxito
realmente surpreendente, pela força do bolsonarismo. Então, a guerra cultural
bolsonarista assegurou ao bolsonarismo uma força que o Bolsonaro nunca teve.
Agora, há uma armadilha nisso. É que a guerra cultural bolsonarista assegura o
êxito incomum do bolsonarismo como movimento político capaz de causar paixão
mobilizadora, e, ao mesmo tempo, não permite que haja governo. Porque não há
guerra cultural bolsonarista sem a invenção, em série, de inimigos. É uma
ironia perversa. Desde que o governo começou, faça uma cronologia dos bodes
expiatórios. Começou lá atrás com Gustavo Bebbiano, terminou agora com Sérgio
Moro.
Então a guerra cultural é o objetivo do governo?
A guerra cultural é
o eixo do governo. Por isso mesmo, a guerra cultural não deixa que haja
governo. Esse é o paradoxo. Este governo vai entrar em colapso administrativo.
A guerra cultural assegura o êxito do bolsonarismo e impossibilita a ação do
governo.
Isso explica a ação, ou não-ação, do governo as pandemia?
Justamente,
exatamente. Eu não estou dizendo isso de maneira metafórica, estou dizendo de
maneira concreta. O que está acontecendo agora na pandemia é desastroso.
Estamos falando de uma quantidade inimaginável de pessoas neste País que não
precisavam morrer. Não era necessário. Mas qual é a atitude de Bolsonaro? O
Bolsonaro nunca foi, pelo menos nunca vimos, visitando um hospital para prestar
solidariedade às famílias e para agradecer aos profissionais de saúde. Já vimos
isso? Mas vimos o Bolsonaro, nas suas lives, receitar remédio! Em lugar de
administrar a crise, de vislumbrar um futuro difícil e se antecipar a ele, o
Bolsonaro gasta o tempo inteiro criando inimigos políticos. Ou seja: o que temos
é bolsonarismo em excesso para governo em absoluta ausência. Não temos governo,
e não teremos governo enquanto durar a guerra cultural bolsonarista.
O senhor cogitou que os grupos digitais bolsonaristas ficariam mais
extremistas, não?
Estão ficando. E
não somente isso, as milícias digitais estão indo para as ruas. O caso absurdo
deste grupo dos 300… Aqui a coisa fica séria. Na minha hipótese original, antes
do surto desta peste, eu imaginava que o Brasil seguiria até 2022 em uma
disputa insana de narrativas. Mas, com a presença de uma peste, nós, seres
humanos, temos um encontro marcado com aquilo que não queremos jamais
encontrar, que é a finitude, a morte. É muito claro: a morte não é um meme, e e
vida não se reduz à disputa de narrativas. Então, infelizmente, esta peste nos
confronta com a necessidade de observar com cuidado dados objetivos da
realidade. Diante de uma peste, diante da morte, não temos o direito de brincar
de disputas narrativas. Os índices de rejeição do Bolsonaro aumentarão
bastante, e as perspectivas não são muito boas. Porque não se trata apenas da
queda de um presidente. Isso já aconteceu entre nós: Fernando Collor, Dilma
Rousseff. Não se trata do final melancólico de uma presidência - já ocorreu
conosco, Fernando Henrique Cardoso. Trata-se de um presidente cujos filhos
enfrentam sérios problemas na Justiça. Bolsonaro terá uma resistência enorme a
reconhecer o término do seu governo. Porque o que está envolvido, para ele, em
última instância, não é o Brasil, não é projeto de Brasil. O que está envolvido
é a defesa da família. Precisamos considerar que esse grupo dos 300, que eram
30… Temos de resistir à tentação de reduzi-los à caricatura. São o embrião de
algo muito perigoso, que é a formação de milícias paramilitares. As polícias
militares têm uma forte inclinação bolsonarista. Haverá um recrudescimento
muito grande da tensão, porque quando a peste… Eu prefiro falar peste, para que
as pessoas compreendam. Então, a peste, quando estiver controlada, a economia
estará em uma recessão profunda, muito provavelmente, pelas projeções, será a
mais séria recessão da história brasileira, superior aos dois PIBs negativos do
governo Dilma Rousseff em 2014 e 2015, o desemprego aumentará muito, o que
significa que a tensão social estará em uma escala muito alta. Nesse momento, o
governo Bolsonaro estará provavelmente em desintegração acelerada, ficará cada
vez mais claro, a não ser para os apoiadores fanáticos, que o bolsonarismo,
quanto mais é exitoso, mais fracassado é o governo do Bolsonaro. Nunca vimos
qual seria o projeto do Bolsonaro para o País. Nunca houve uma apresentação
formal. O governo Bolsonaro é uma arquitetura da destruição. Por volta de
setembro, outubro, acho que vamos estar em uma situação como há décadas não
imaginávamos que poderíamos viver.
Qual deverá ser o efeito sobre o bolsonarismo da prisão de Fabrício
Queiroz, em um caso que envolve um dos filhos do presidente?
A prisão do Queiroz
e seus desdobramentos deverão acelerar a distinção entre apoiadores e eventuais
eleitores de Bolsonaro. Estes últimos votaram menos no capitão e muito mais
contra o PT. Eles certamente abandonarão, se já não abandonaram o barco, se a
corrupção bolsonarista for comprovada. Por outro lado, os apoiadores, imagino
que 15%, talvez 20% dos 57 milhões de votos de Bolsonaro, tendem a negar
qualquer evidência e permanecer fiéis ao bolsonarismo.