Na sociedade hebraica a família era o âmago da estrutura social. Na Tanach, exclusivamente em Berê’shîth (Gênesis), encontramos o princípio judaico-cristão da família no texto que diz: “E disse o SENHOR Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma adjutora que esteja como diante dele.
Então, o SENHOR Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas e cerrou a carne em seu lugar. E da costela que o SENHOR Deus tomou do homem formou uma mulher; e trouxe-a a Adão. E disse Adão: Esta é agora osso dos meus ossos e carne da minha carne; esta será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada. Portanto, deixará o varão o seu pai e a sua mãe e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne. E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam” (Gn 2.18,21-25).
Segundo o filósofo Lévi-Strauss, o princípio da família é dado pelo texto da Escritura que diz: “deixará o varão o seu pai e a sua mãe”, regra infrangível ditada a toda a sociedade para que possa estabelecer-se e durar.
• Família, Centro da Comunhão.
Deus é quem decidiu criar a família. Esta foi formada para ser um centro de comunhão e cooperação entre os cônjuges. Um núcleo por meio do qual as bênçãos divinas fluiriam e se espalhariam sobre a terra (Gn 1.28).
Não era parte do projeto célico que o homem vivesse só, sem ninguém ao seu lado para compartilhar tudo o que era e tudo o que recebeu da parte de Deus.
O homem sente-se pessoa não apenas pelo que é, mas também quando vê o seu reflexo no outro que lhe é semelhante. Portanto, a sentença divina ecoada nos umbrais eternos expressa o amor e o cuidado celeste para com a vida afetiva do homem. Para Deus, “não é bom que o homem esteja só”. O verbo estar, no presente do subjuntivo (esteja), tradução do hebraico hayâ, expressa um estado circunstancial e transitório do ser. A solidão é um agravo à saúde psicofísica da criatura humana e, por mais esta razão, Deus não deixaria a criatura feita à sua imagem sem um semelhante para comungar.
O próprio Deus não estava solitário na eternidade, mas partilhava de incomensurável comunhão com o Filho e o Santo Espírito. Deus é um ser pessoal e sociável às suas criaturas morais. No entanto, contrapondo a natureza divina à humana, concluímos que o intrínseco relacionamento entre a divindade e o ente humano dá-se em níveis transcendentais, metafísicos.
Por conseguinte, faltava ao homem alguém que lhe fosse semelhante, ossos dos seus ossos, carne de sua carne, alguém que se chamasse “varoa” porquanto do “varão” foi formada. Essa correspondência não foi encontrada nos seres irracionais criados, mas na criatura tomada de sua própria carne e essência. A mulher era ao homem o vis-à-vis de sua existência. Seu reflexo. Partida e chegada. Como sabiamente afirmou Derek Kidner, “a mulher é apresentada integralmente como sua associada e sua réplica”. Nisto, inferimos que a comunhão entre os cônjuges envolve a plena identificação com o outro. Deus se identifica com o homem, e este, com Deus, pela imagem divina que no homem está. O homem e a mulher se identificam mutuamente por compartilharem da mesmíssima imagem divina: “E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou” (Gn 1.27).
Homem e mulher, portanto, fazem parte do mesmo projeto celífluo.
Sentem-se tão necessários à existência do outro quanto dependem individualmente do ar que respiram. Esta interdependência é inerente à formação moral e espiritual do próprio ser. Faz parte do mistério, da teia de encontros e desencontros, de fluxo e refluxo que cercam a união entre homem e mulher. A união conjugal, portanto, antes de ser um contrato jurídico, era um ato de amor, companheirismo e cumplicidade em que as principais necessidades humanas eram plenamente satisfeitas. Homem e mulher se auto-realizavam um no outro. Para o sábio era mais fácil entender o caminho da cobra na rocha; o do navio no meio do mar, ou, ainda, da águia no céu do que o “encontro” de um homem com uma mulher (Pv 30.18,19). O espanto do sábio só se compara ao de Ismene à Antígona ao dizer: “De fogo é o teu coração em atos que gelam”.
• A Constituição do Núcleo Familiar.
A constituição do núcleo familiar a priori foi composta por um homem e uma mulher. Mais tarde, acrescentou-se ao casal os filhos gerados dessa união. A partir do nascimento dos primeiros filhos, a família tornou-se o primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido.
A primeira família, formada apenas por duas pessoas, tornou-se numerosa por meio dos filhos que, ao serem gerados, se inseriram ao núcleo familiar assumindo diversos papéis dentro do sistema: filho, irmão, neto, primo, etc. A família não foi criada, portanto, como um sistema fechado, mas dinâmico, e, com o passar do tempo, o número de seus membros foi aumentando gradativamente, e destes formando novos núcleos familiares ligados por consanguinidade e afinidade. Para mencionar mais uma vez Lévi-Strauss, este considerava que o grupo familiar tem sua origem no casamento. Este núcleo é constituído pelo marido, pela mulher e pelos filhos nascidos dessa união, bem como por parentes afins aglutinados a esse núcleo.
No contexto desse sistema familiar, cada membro do grupo passa por uma série de funções ou papéis sociais determinados tanto por fatores exógenos, que estão ligados aos cenários sociais próximos a ele, como por endógenos, ligados a idade, sexo e maturação psicológica.
Embora óbvio e redundante, creio ser necessário registrar que a família é o primeiro sistema social mais significativo e importante para os primeiros anos de vida de qualquer indivíduo. Consequentemente, a primeira experiência relevante de qualquer pessoa, exceptis excipiendis, manifesta-se positiva ou negativamente no sistema familiar. No entanto, é sabido que a família não é a única instituição responsável pelo crescimento cognitivo, afetivo, religioso e social do indivíduo, mas, como afirma Bronfenbrenner:
O mundo exterior tem um impacto considerável desde o momento em que a criança começa a relacionar-se com as pessoas, grupos e instituições, cada uma das quais lhe impõe suas perspectivas, contribuindo, assim, para a formação de seus valores, de suas habilidades e de seus hábitos de conduta.
Esta explicação serve-nos de esteio para a constatação da importância que a instituição familiar e das muitas outras vigentes em Israel no tempo do Antigo Testamento – civil, militar e religiosa – tinham para a formação de um Estado teocrático. Todos se pautavam em um único livro, procedente da vontade do Único e Eterno Deus de Israel (cf. Nm 15.15,16,29).
Texto extraído da obra “A Família no Antigo Testamento: História e Sociologia”, editada pela CPAD. Publicado no Portal CPAD.