Outra leitura que faço é a da cria indesejada do pentecostalismo, o neopentecostalismo. Aqui me arrisco de novo em uma explicação. O neo-pentecostalismo nasceu do adiamento pentecostal da reflexão. As manifestações derivadas do neopentecostalismo cada vez mais bizarras e cada vez se substituindo mais rapidamente por outras, marca da lógica de mercado, foram recebidas com fluência no ambiente pentecostal clássico. Ávidos pelo poder em sua expressão mais performática, inconformados com a perda do fenômeno pentecostal das primeiras décadas, nós pentecostais tornamo-nos presas fáceis para a chamada teologia da prosperidade e movimentos da fé de origem norte-americana. Rapidamente nosso pentecostalismo migrou do fervor missionário para o êxtase narcisista. Lotamos auditórios para assistirmos o espetáculo de ilusionistas religiosos derrubando no chão crentes sugestionáveis. Escancaramos nossas portas para ouvir com ingenuidade pregadores influenciados pelo neognosticismo originado na Ciência Cristã, também exportado pela cultura evangélica norte-americana. Alguém já disse que os alemães inventaram a teologia, os americanos estragaram e nós consumimos!
Diante disso, proponho uma revisão de nossa pentecostalidade. Como emblema do nosso pentecostalismo, o falar em línguas pode ser o ícone deste movimento aqui revisitado. Façamos do falar em línguas nosso ponto simbólico de reflexão e construção deste novo pentecostalismo. Dentro do discurso tradicional da doutrina pentecostal, o falar em línguas estranhas, a glossolalia de Atos 2, é o primeiro sinal necessário e evidência do Batismo com o Espírito Santo. As línguas estranhas são o fenômeno da segunda benção. Esta por sua vez, distinta da salvação, sujeita e posterior a ela, é o componente carismático de Deus para o cumprimento da tarefa missionária da igreja (At 1.8). A conclusão imediata da doutrina pentecostal é que ninguém está plenamente apto para o exercício ministerial sem o batismo com o Espírito Santo e este evidenciado pelo falar em línguas. Como também, o sinal de línguas, freqüentemente diferenciado pelos manuais pentecostais do dom de línguas, é a porta de entrada dos dons espirituais listados por Paulo em 1Co 12.
A relação óbvia das línguas com o poder precisa ser enxergada na prática pentecostal. Quem fala em línguas tem poder. Os que ousam discutir a relação necessária do Batismo com as línguas ouve a questão sempre: mas como saber se alguém foi ou não batizado sem as línguas? Para conferir o estatuto de competência espiritual ao então batizado com o Espírito Santo precisamos de uma evidência forte. Para promovê-lo à elite dos contemplados pelo poder carecemos de uma indicação indiscutível. O que novamente indica que o falar em línguas alça o indivíduo à categoria dos que podem em detrimento dos que não podem. O critério de conferir cargos eclesiásticos ao que fala em línguas aprofunda a relação línguas-poder. E o faz de forma mais grosseira, porque agora quem fala em línguas é promovido na hierarquia de poder. Diácono, presbítero, evangelista e pastor, os homens do mando têm que carregar a chancela das línguas estranhas.
Com muita freqüência ouço desabafo de pessoas aflitas dentro da igreja. Sentem-se excluídas por Deus da benção do Espírito Santo. São crentes leais. Homens e mulheres íntegros e apaixonados por Deus. Ouço de homens que morreram sem realizarem o sonho do exercício ministerial por também não terem sido contemplados pelo Batismo.
Esta perspectiva cria algumas situações no mínimo ridículas. Pessoas que falam qualquer coisa que se pareça com o que ouvem de outros. Assovios. Grunhidos. Glórias a Deus repetidos freneticamente até que se tornem impronunciáveis. – Fala “glória, glória, glória” bem rápido, irmão! Outros são ensinados a repetir o que estão ouvindo. Faz-se qualquer negócio para estar entre os abençoados. Para ser contado entre as mãos que se levantam e fornecem os números alvissareiros do pregador.
Há os pregadores que descobrem fórmulas de como levar o povo ao Batismo. Em um dia desses, um amigo confidenciou-me seu segredo avivalista: – Conto muitos testemunhos e depois ensino às pessoas que peçam uma vez só e depois apenas louvem e glorifiquem a Deus. É tiro certo! Perguntei-lhe: mas e o Espírito Santo? E o nosso relacionamento pessoal com Jesus? Se não fizer tudo como no figurino, Jesus não faz? Isso parece mais um abracadabra pentecostal do que uma visitação prodigiosa do Espírito Santo de Deus!
É preciso que se diga que por mais que funcione, a doutrina pentecostal da evidência inicial do Batismo com o Espírito Santo é oca de conteúdo bíblico. Nos chamados quatro pentecostes de Atos (2.1-13; 8.4-25; 9.24-48; 19.1-6), nem todos registram a glossolalia e, exceto o do Dia de Pentecostes em Jerusalém, o sinal das línguas estranhas não é a única evidência. Lucas lista também as profecias, adoração e alegria. Entre os samaritanos nada diz. Apenas afirma que receberam o Espírito (At 8.17). As línguas são um sinal freqüente, mas não um sinal imprescindível.
Nas cartas, onde se ensina sobre os dons espirituais, nada se fala sobre o Batismo com o Espírito Santo como evidenciado necessária e inicialmente pelo falar em línguas. Ao contrário, as línguas são listadas entre outros dons vários, cuja riqueza está na diversidade. Nem todos fazem as mesmas coisas nem experimentam os mesmos dons. É a vitória do imponderável Espírito Santo sobre a mesmice dominadora das práticas de poder humanas(1Co 12.28-31).
Não vemos os apóstolos recomendando às igrejas a busca do Batismo com o Espírito Santo. Ensinam a busca dos dons em sua diversidade. Falam a essas igrejas partindo do pressuposto de que já experimentaram a segunda benção. Mais ainda, em Atos, Lucas não descreve nenhum caso de batismo com o Espírito individual. Salvo o registro de que Paulo, após a oração de Ananias, foi curado de sua enfermidade e ficou cheio do Espírito. Todos os demais registros são de um fenômeno coletivo. O Espírito foi derramado sobre todos os que estavam no cenáculo em Jerusalém. Entre os samaritanos, Pedro e João impuseram as mãos e eles receberam o Espírito Santo. Na casa de Cornélio, o Espírito desceu sobre todos os que ouviam a pregação de Pedro. Entre os discípulos efésios, Paulo os batizou nas águas e todos foram cheios do Espírito.
O Novo Testamento ensina uma experiência espiritual comunitária, porque é uma experiência de relacionalidade e não de exclusividade. Os dons do Espírito, curiosamente, só se justificam na comunhão. Paulo não deixa dúvidas sobre isto na tríade de capítulos, 12, 13 e 14, da Primeira Carta aos Coríntios, onde ensina sobre o fervor inteligente dos dons no culto. 12.7, e 14:2-4.
Não há alguns batizados em detrimento de outros na igreja local, no ajuntamento dos irmãos. Quando um é, todos são. Esta é a lógica da Bíblia. Quantos foram batizados? Esta é a pergunta recorrente no ambiente pentecostal. Um equívoco. A pergunta bíblica não é esta: A igreja já foi batizada com Espírito Santo? Isto significaria dizer que qualquer um que dela fizer parte torna-se participante da segunda benção, que certamente será por ele experimentada com intensidade em algum momento e partir de algum dom espiritual.
Finalmente, o dom de línguas, ao contrário do que somos levados a crer na ambiência pentecostal, não é um sinal de poder, prestígio e orgulho. É um sinal de fraqueza, humildade e esvaziamento. Falamos línguas que sequer conseguimos entender(1Co 14.14). O sinal mais freqüente do Batismo com o Espírito Santo é o da fala de algo que nós mesmos não conseguimos elaborar. Isto que recebemos de Deus, por sua graça, a salvação em Cristo é algo tão superior a nós, tão acima de nossos méritos e habilidades que sequer conseguimos fazer caber em nossa linguagem. Outras línguassão as que falam com satisfação, mas apenas para o íntimo de quem fala. Aquele que fala em outras línguas é lembrado e torna-se um lembrete de Deus de que é limitado. De que o Reino do qual participa não foi conquistado por suas habilidades e, portanto, quem quer que dele participe precisará depender do Espírito Santo de Deus, o Outro Consolador que nos guiará em todas as coisas.
O dom de línguas é um lembrete com doce vergonha da nossa incapacidade de fazer coisas. Precisamos de Deus. Precisamos uns dos outros. A descrição da igreja pentecostal em Atos não é de uma igreja potente e imponente. Mas de uma comunidade de irmãos que se amavam concretamente. At 2.44-47.
No dom de línguas somos levados a um esvaziamento de poder. Nosso poder caído, de gente pecadora. O poder de dominação do outro e perpetuação de si mesmo é substituído por um outro poder. Poder do Espírito. Bem maior do que a nossa vã linguagem pode pronunciar. O mesmo que veio sobre Jesus e o capacitou a encarnar o amor de Deus entre os homens, mesmo sem ter falado em outras línguas. O mesmo poder que capacitou Jesus a fragilizar-se como pessoa até a morte de cruz (Fl 2.5-8). A enfrentar o poder das Trevas no palco do Calvário. A vencer o poder maligno não com mais poder, mas com outro poder. O poder do amor que se enfraquece para salvar.
Mais do que nunca, nosso pentecostalismo precisa redescobrir sua busca de poder. É inadiável uma renúncia deste poder violento de dominação religiosa. Não somos chamados por Deus para abalar nossas cidades com o poder do Espírito. Nossa gente já está abalada demais pela violência, pelos maus governantes, pelo mercado implacável, pela competitividade desumanizante, pela miséria social para sofrer mais abalos.
Nossa vocação pentecostal precisa seguir os passos do Mestre. Cheio do Espírito(Lc 3.21-22; 4.1-13), antes de qualquer tarefa, venceu a tentação do Diabo de viver por um outro poder que não o que recebera no Jordão sob a fala amorosa do Pai: “Este é omeu filho amado em quem tenho prazer.”
Se no Jordão, após o batismo de João, Jesus foi batizado no Espírito Santo. No deserto, solitário e suscetível, foi batizado pelo Espírito em nossa humanidade. Na oferta oportuna do Diabo, Jesus renunciou o poder de não ser gente, de embrutecer diante da mais frágil manifestação de fraqueza humana, a fome: transforma esta pedra em pão. Reduzir um tempo de intimidade com Deus e com a sua humanidade à magia de atalho para a saciedade seria ridicularizar tudo o que Deus já havia ofertado. Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que vem da boca de Deus.
Recusou-se ao poder de conquistar o mundo em fama e glória, de ter uma imagem brilhante de poder: tudo isto de darei se prostrado me adorares. O poder que veio exercer não atrairia o mundo pela glória e fama, mas pela graciosa entrega de si mesmo em amor. “Mas eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12.23-33).
Deu as costas para o poder de ser uma exceção de segurança e felicidade em um mundo inseguro e infeliz: “Se és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo. ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o guardarem; com as mãos eles o segurarão,para que você não tropece em alguma pedra’”. Sua resposta tem que ser a nossa: “não colocarás o Senhor teu Deus à prova”. Uma gente cheia do Espírito não carece de espetáculos narcíseos para saber quem é. Já sabemos quem somos. O Espírito já nos foi dado (Lc 11.13). Qualquer outra prova é uma exigência idólatra e tola.
Alguém me perguntou recentemente: qual é o seu pentecostalismo? É este.
Fonte: http://elienaijr.wordpress.com/2006/11/24/meu-pentecostalismo-revisitado/