Justos
Gonzalez ensinou teologia histórica em diversas instituições, entre elas o
Seminário Evangélico em Porto Rico, a Escola de Teologia Candler na
Universidade Emory, e o Seminário Teológico Columbia. Durante os últimos 30
anos, ele desenvolveu programas de formação teológica para hispanos.
Teologia
Brasileira: O que o motivou a estudar
“história”, especificamente, “história do cristianismo”?
Justo Gonzalez: Quando eu
era jovem, a matéria que eu mais odiava na escola era história. Eram muitos
nomes, muitas datas, muita memória e pouca vida. Mas depois, quando eu fiquei
um pouquinho mais velho e comecei a estudar Teologia, vi livros de bons
teólogos e os melhores sempre falavam de seus antecessores, de gente que eu não
conhecia. Havia um livro muito famoso, A teologia dogmática de
Karl Barth, que era um livro muito grande. Quando comecei a ler esse livro,
cada página tinha 10, 12 nomes de pessoas que eu não sabia quem eram. Pessoas
do século segundo, do século quinze, do século quarto. Naquela época, eu também
estudava Filosofia, e logo notei que era impossível estudar Filosofia sem
estudar a História da Filosofia. Os cursos de Introdução à Filosofia sempre
começam com a Filosofia Grega. Da mesma forma, não é possível estudar Teologia
sem conhecer a História da Teologia. Foi isso que me levou a estudar a história
do cristianismo. Hoje me interesso mais pela história porque percebo que a
História fala da vida dos povos, da vida de homens e mulheres, de quando essas
pessoas viviam, as obras que esculpiam. Isso tudo era tão importante para eles
como nossa vida é para nós hoje. Por isso não tem nenhuma razão para a História
ser algo chato, muito pelo contrário. Você lê um romance histórico, um romance
sobre o rei Carlos V e fica muito impressionado porque ali está a história
da vida dele.
Teologia Brasileira: Existe
uma história do cristianismo separada da História?
Justo Gonzalez: Existe,
mas não deveria existir. Lamentavelmente, a História do cristianismo é escrita
com exclusão da História geral da humanidade. No entanto, acho que isso não é
bom dos pontos de vista teológico, metodológico e também pedagógico. Não é bom
teologicamente porque nosso Senhor é o Senhor da História, toda a História está
em suas mãos. É evidente que na história há também pecado, mas Jesus é o Senhor
da História e nós aguardamos o fim da História. Logo, não é possível falar da
História da humanidade sem falar da História de um Deus que age dentro dessa
história. Portanto, não deveria existir duas Histórias. Isso que fazemos nas
escolas de separar a História secular não deveria existir. E ao mesmo tempo não
é correto, pois a História da Igreja, a vida da igreja tem lugar sempre dentro
do contexto da vida geral da humanidade. Você não pode falar da igreja no
Brasil, sem falar do Brasil. Você não pode falar das mudanças que têm ocorrido
na igreja brasileira nos últimos cinquenta anos, sem falar das mudanças que têm
ocorrido na história do Brasil como país inteiro nos mesmos cinquenta anos.
Teologia Brasileira: Em termos
de pensadores da história cristã, quais as influências mais marcantes em sua
história pessoal?
Justo Gonzalez: Ah! São
muitas, muitas, muitas. Originalmente, quando eu era mais jovem, as influências
mais marcantes foram principalmente Martinho Lutero e Agostinho. Depois, Irineu
passou a ser mais importante para mim. Ele foi teólogo e bispo na França do
final do século segundo. Outra influência foi Karl Barth. Karl Barth foi um
teólogo suíço que protestou veementemente contra o nazismo e que criou uma nova
maneira de se fazer Teologia no princípio do século XX, por sinal algo que
gerou muita discussão. Além desses que citei, tem também meu pai, minha
mãe, minha esposa; todos são teólogos que têm me influenciado muito.
Teologia Brasileira: Na sua opinião, o testemunho da igreja cristã tem
apresentado uma postura coerente em relação à unidade da igreja?
Justo Gonzalez: Coerente
sim, mas boa não. É coerente, mas ruim. O testemunho da igreja tem perdido
muito por dois motivos, que são ambos negativos. O primeiro é uma divisão
constante, segundo a qual cada igreja pensa que fica só no mundo de Deus, que
só ela é igreja. Isto é verdade em igrejas grandes e também em igreja muito
pequenas; o problema é o mesmo. Outro problema, outro extremo é quando a
unidade da igreja se torna algo administrativo, muitas vezes ditatorial, não
voluntário. Os dois são problemas, a unidade da igreja não é apenas unidade: um
chefe, um papa, um bispo, um grande pastor. Essa postura fez muito mal para o
testemunho cristão.
Teologia Brasileira: Para o sr., quais seriam hoje as
formas veladas de intolerância religiosa?
Justo Gonzalez: Muitas
não são tão veladas. Naturalmente há intolerância religiosa em todas as
religiões e temos de ter cuidado quando falamos em tolerância religiosa entre
os cristãos. Há também muita intolerância religiosa entre os muçulmanos, entre
os hindus. Agora mesmo um grupo de cristãos tem saído de seus territórios
porque os vizinhos estavam matando. O governo diz: “Nós podemos protegê-los,
vocês devem regressar às suas casas mas devem ficar em dois para não ter
problema”. Isso acontece na Índia agora no século XXI, e principalmente nos
países muçulmanos. Agora não acontece com os cristãos. Há muitas e muitas
formas de intolerância religiosa. Eu acho que, em nosso contexto particular na
America Latina, possivelmente a forma mais velada é a intolerância de alguns
chefes, de alguns pastores de igrejas muito grandes que querem que todo mundo
pense exatamente o que eles pensam ponto por ponto, de A a Z. Fazem tudo isso
para manter o povo, levando-o a fazer o que eles dizem. Isso é intolerância
religiosa também. Intolerância religiosa não é um problema só da igreja romana,
é um problema de todos os cristãos que acreditam ser possuidores da verdade. O
cristão não possui a verdade, a verdade possui o cristão.
Teologia Brasileira: Como o sr. avalia o crescimento do
cristianismo na América Latina?
Justo Gonzalez: Há coisas muito boas, e isso eu não
preciso falar porque todo mundo já conhece. Mas há também alguns perigos
e problemas: a espuma cresce muito, mas não tem muita sustância; e boa parte do
crescimento do protestantismo na América Latina é como uma espuma. Não é a
primeira vez que isso é um problema para a igreja. Isso também aconteceu no
século quarto e teve consequências nefastas mais tarde. As pessoas não sabem no
que creem. Por esse motivo, nós precisamos agora tomar o tempo necessário para
trabalhar o discipulado, o ensino, as doutrinas, a teologia, a vida cristã —
sobre a prática da vida cristã, sobre a experiência entre a vida cristã e a
vida secular, e sobre a diferença entre o sucesso cristão e o sucesso como o
mundo entende. Precisamos falar mais disso, de modo que as pessoas que venham
para as nossas igrejas verdadeiramente tenham sustância nas suas crenças. Essa
[a falta de sustância] é uma das razões por que as pessoas creem em alguém que
vem a uma das nossas igrejas com uma doutrina nova ou um texto bíblico achando
que isso explica tudo. Esse é um problema do crescimento espumoso.
Teologia Brasileira: É dito que a América Latina é um
celeiro de missões. Como o sr. vê essa afirmação?
Justo Gonzalez: Possivelmente a coisa mais importante
que tem acontecido na igreja cristã em todo o mundo, nos últimos cinquenta,
setenta anos, é que os centros do cristianismo têm mudado. Isso não é a
primeira vez. No Novo testamento, temos primeiro Jerusalém, depois Antioquia,
depois no Mediterrâneo, depois na Europa Ocidental; depois no século XVI com os
espanhóis e os portugueses, e no século XIX o centro veio a ser o Atlântico
Norte. O eixo do cristianismo estava na linha que vai de Londres até Nova
Iorque, e era de lá que saíam os missionários. O que tem acontecido nos últimos
anos é que o centro tem mudado. Agora existem mais cristãos no Sul do que no
Norte. Isso não se dá somente na América Latina, mas também na África e na
Ásia. A Igreja Presbiteriana da Coréia é maior do que sua igreja mãe nos
Estados Unidos. Hoje a ilha de Porto Rico envia mais missionários para Nova
Iorque do que a igreja de Nova Iorque manda para o restante do mundo. A mudança
é enorme. A América Latina, que até a segunda metade do século passado era
receptora das missões, tem sido enviadora de missionários para as missões. Isso
é muito interessante porque agora as pessoas que pregam o evangelho em Uganda
podem ser ingleses, mas podem ser também brasileiros, argentinos, coreanos. As
pessoas que pregam aqui no Brasil são os chineses, os coreanos… E as pessoas
que pregam na Argentina são uruguaias. Isso é a troca. Troca que é muito maior
do que nós vemos no mapa mundial da igreja cristã.
Teologia Brasileira: Em sua obra Cristianismo para
América Latina, o sr. argumenta que há uma relação mutuamente formadora entre o
cristianismo e o contexto latino-americano. Poderia nos falar um pouco sobre
essa sua tese?
Justo Gonzalez: Primeiramente, eu não leio o que
escrevo [risos]. Não há dúvida de que o cristianismo tem feito um grande
impacto na América Latina. O catolicismo romano implantado pelos espanhóis e
pelos portugueses está na base da formação religiosa e cultural do continente.
Há também as influências indígenas, as influências africanas, mas o ingrediente
principal é o que vem da Ibéria, o cristianismo ibérico. Mas o cristianismo que
vem à América Latina também se transformou na América Latina, de muitas
maneiras. Não somente o cristianismo espanhol e português exerceu influência
sobre os indígenas; a religião dos indígenas também influenciou o cristianismo
que se desenvolveu. Eu falava hoje sobre a virgem de Guadalupe. Ela é,
originalmente, uma deusa asteca. Há também os africanos, que são elementos
africanos latino-americanos e não africanos da África — como os escravos
brasileiros que desenvolveram sua religião da África no Brasil. Isso não se dá
somente na igreja católica, mas também na igreja protestante. Eu tenho amigos
antropólogos e sociólogos que fazem comparações entre a maneira que a religião
e o culto funcionam dentro das comunidades originalmente escravas e as maneiras
que funcionam nas novas igrejas pentecostais. Mesmo que não vejamos, em todo o
mundo branco, há uma influência africana que fica ainda lá. Agora,
especialmente porque a América Latina é um centro de missões, esse cristianismo
da América Latina também vai para o resto do mundo. A América Latina aceita o
resto do mundo. Hoje, nos Estados Unidos, mais da metade dos católicos romanos
são latinos; nas igrejas pentecostais são entre 20 a 30 por cento; nas igrejas
mais antigas, as chamadas históricas, o crescimento se dá entre os latinos e os
coreanos. O cristianismo da América Latina tem ido para todo o mundo.
Teologia Brasileira: Como o sr. vê a produção teológica na
América Latina?
Justo Gonzalez: Bem há seus pontos claros e seus
problemas. Primeiramente, é preciso pensar na troca que tem acontecido nos
últimos cinquenta anos; e não se deve pensar que a situação presente é a
situação de sempre. Eu vejo coisas muito positivas. Deixe-me contar uma
história. Quando eu estava no seminário, o primeiro livro de História da Igreja
que eu estudava era um livro grande de mil e quinhentas páginas, com letra muito
pequena, em inglês, porque não existia em espanhol. Era um livro que mostrava
que depois da Reforma o que interessava era a Europa do Norte, os alemães, os
ingleses e, depois, os americanos. Eu disse ao meu professor de História que
ele deveria fazer um livro de História com o nosso ponto de vista. E ele disse:
“Meu filho, isso jamais acontecerá, porque o mercado latino-americano é muito
pequeno, e isso não é possível”. Hoje esse livro que vocês publicam é o
principal em todos os seminários dos Estados Unidos. É um livro que não era
possível há cinquenta anos. Essa é uma mudança enorme. Se nós virmos o que
existe e pensarmos ser um retrato do presente, podemos falar do que falta, mas,
se olharmos o que vem acontecendo nos últimos trinta, quarenta anos, temos
muitas razões para ter esperança. Para mim, o que é mais importante é que,
teologicamente, a igreja latino-americana começa a ser ela mesma. E sua
teologia tem o mesmo respeito da teologia que vem do estrangeiro. A teologia do
estrangeiro é boa, mas não é nossa. Ela é boa no estrangeiro. Mas é preciso que
o povo latino-americano reflita sobre a sua fé e produza uma teologia
latino-americana. Isso já acontece, mas, se você vir os hinos musicados, por
exemplo, muitos são traduzidos do alemão, e poucos são produções espanholas ou
portuguesas. Acho que temos muito ainda para percorrer, mas já temos percorrido
o caminho. Por isso, não devemos ser pessimistas, nem tampouco podemos ficar
contentes, porque ainda há uma grande parte do nosso povo que vê algo, que vem
diretamente dos Estados Unidos ou de um programa de televisão norte-americano,
como algo vindo diretamente do céu.
Teologia Brasileira: De que forma o cristianismo contribuiu e
pode vir a contribuir para a história da América Latina?
Justo Gonzalez: O cristianismo contribuiu de várias
formas. Como falamos antes, o cristianismo é um dos elementos principais da
cultura latino-americana. E não somente no aspecto religioso, mas também no
idioma que os cristãos trouxeram. O cristianismo também contribuiu com a
liberdade religiosa — especialmente o protestantismo — porque o movimento
protestante foi um movimento em prol da liberdade. Muitos dos latino-americanos
se não eram protestantes eram pelo menos simpatizantes dos protestantes. E
depois, quando veio o liberalismo, muitos dos governantes liberais utilizaram a
igreja para promover a educação e a liberdade de pensamento. Isso aconteceu em
muitos lugares. Mas há o lado negativo: existe uma forma de cristianismo que é
um dualismo platonista, que defende que só o espiritual é que é bom. Esse tipo
de cristianismo tira as pessoas da realidade social e não permite que elas
façam a contribuição que poderiam fazer. Eu acho que o cristianismo pode
contribuir muito, o grande problema é que as igrejas pensam que sua contribuição
é governar, é mandar, é ter poder. Hoje há deputados, prefeitos, alguns países
têm presidentes evangélicos. Se a igreja pensa em mandar ela acaba fazendo
aquilo que o catolicismo romano fez. Mas, se a igreja entende que ela tem
implicações para a vida total do povo, ela apoia as iniciativas do país que
sejam boas.
Entrevista concedida para o site Teologia Brasileira, durante o 1º
Congresso Hagnos e Servo de Cristo 2009
Meu comentário: Sou desde a adolescência apaixonado por história. Os livros de Justo Gonzalez tem livros que são referência em língua portuguesa. A entrevista foi feita há 11 anos atrás, mas acredito que ainda continua atual.