quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Atos dos Apóstolos a base da doutrina pentecostal - Introdução

A nível de introdução desta postagem desejo esclarecer, antes de mais nada, que não é minha intenção, sob hipótese alguma, atiçar polêmica em torno deste tema santo, delicado demais para nos agredirmos por meio dele. Contudo, devo admitir o fato de que não há assunto ou teologia na Igreja Evangélica Contemporânea que maior número de interpretações e polêmicas tenha suscitado do que este. A constatação de tal realidade é fácil quando se vê o número enorme de grupos e de perspectivas teológicas sobre o Batismo com, em ou no Espírito Santo.

Entre as muitas perspectivas pelas quais se vê este tema, tem-se a dos reformados-conservadores,dos reformados-abertos, dos reformados carismáticos, dos carismáticos de linha não reformada, dos católicos carismáticos e dos pentecostais. Estes, por sua vez, se subdividem em outros grupos: os pentecostais-tradicionais (representadas no Brasil por igrejas como a Assembléia de Deus), os pentecostais-renovados (igrejas como as Batistas Renovadas ou Presbiterianas Renovadas) e os pentecostais-folclóricos (genuinamente representada pela Universal do Reino de Deus). São tantos os ramos, que só posso lamentar tantas divisões. Portanto, não é intenção deste livro ajudar a aumentar ou acirrar tais segmentações.

Também para abrir este capitulo quero afirmar algo que John Stott tem enunciado como um princípio de sabedoria e cautela em estudos deste gênero e que eu, como não poderia deixar de acontecer, vou adotar neste livro. Ou seja: não podemos criar doutrina em cima do livro de Atos. Digo isto baseado no fato de que a maioria das teologias a respeito do Espírito Santo atribuem a ele sua principal, às vezes única “referência doutrinária”.

Mas o livro de Atos ─ como o próprio nome diz ─ é um livro de atos, de experiências, não de doutrinas. E atos, experiências, não são padronizáveis, não podem ser absolutizados na sua forma: só doutrinas têm a tal possibilidade.

Se fôssemos erguer doutrinas com base em Atos, imagine que doutrinas ─ como a da conversão ─ ganhariam um lugar sem precedentes na vida e na experiência de Paulo. Porque se há uma experiência de conversão extraordinária, em Atos, esta é a do apóstolo: “... subitamente uma luz do céu brilhou no seu redor e, caindo por terra, ouviu uma voz (...) e ficou cego (...)” Baseado nisso eu poderia escrever um livro sobre “Os sintomas e as evidências da conversão”, no qual afirmaria o seguinte: “O homem convertido é aquele que viu uma luz no céu ─ mais precisamente ao meio-dia (Não valeria às 6 da manhã, às 10, ou às 11 horas). Ouviu uma voz e ficou cego três dias”. J

Já imaginou pessoas construindo, doutrina sobre conversão em cima da experiência de Paulo? Estaríamos todos perdidos! Quantos de nós têm encontrado Cristo desse modo? A absolutização da conversão de Paulo como o verdadeiro padrão doutrinário-experiencial iria criar duas realidades: um grande grupo de neuróticos procurando viver, sentir e produzir os mesmos fenômenos de conversão; e um grupo de mentirosos afirmando que experimentaram tais fenômenos. Portanto, transformar experiências em padrões doutrinários pode ser uma catástrofe.

Também a nível de introdução devo dizer que precisamos estar dispostos a renovar a mente. Como já vimos, o livro de Atos nos impossibilita de fazer qualquer sistematização de uma fórmula teológica sobre como se dá o batismo com o Espírito Santo. Ele não oferece doutrinas, apenas relata experiências, e estas não obedecem a um padrão. Prova disso são aquelas relacionadas como recebimento do Espírito Santo.

Observe o seguinte. Com os discípulos de Jesus e os cento e vinte que receberam o Espírito Santo no dia de Pentecoste, qual foi o caminho de fé que eles tinham percorrido até aquele momento? Em primeiro lugar, eles nutriam fé em Jesus, e isso desde o ano inicial do seu ministério (At. 1:13-22). Eles haviam sidos batizados ─ ou por João Batista, ou no começo do ministério de Jesus; foram discipulados por Jesus durante três anos, e no dia de Pentecoste receberam o Espírito Santo. Nesse mesmo dia três mil pessoas creram na pregação de Pedro. E o que lhes aconteceu? Pedro os convidou a receber o mesmo dom que haviam recebido (At. 2:38). E qual foi a espiritual, até receberem o Espírito? Arrependimento, batismo, e a promessa do Espírito Santo. É o que diz Atos 2:38: “Arrependei-vos (...) cada um de vós seja batizado (...) e recebereis o dom do Espírito Santo”. Assim, trata-se de uma ordem de fatos totalmente diferente das dos 12 discípulos ou dos 120 da manhã de Pentecoste.

Temos também aquele grupo de Samaria que se converteu com a pregação de Filipe. Diz a Bíblia que eles creram, foram batizados, e inclusive houve um interregno, até que Pedro e João foram lá, oraram, e eles receberam o Espírito Santo. Aconteceu então a conversão de Paulo, e a foi: arrependimento, fé, recebimento do Espírito Santo (quando Ananias orou com ele) e batismo. Depois vem Cornélio, que ouviu a Palavra, reagiu com fé, recebeu o Espírito Santo e foi batizado. Após ele vem a dos discípulos de Éfeso, em Atos 19. Eles ouviram a Palavra, receberam o batismo, depois o Espírito Santo.

Com base nessas experiências, como se poderia afirmar ─ conforme alguns livros de doutrina pentecostal baseada em Atos ─ que a primeira coisa a se fazer é esta, a segunda essa, a terceira aquela? Ou que acontece o batismo com ou sem água, e só depois o batismo com o Espírito Santo? Ou seja: antes, obrigatoriamente, tal passo tem de acontecer, caso contrário nada absolutamente sucedera. Em muitos casos trata-se quase de uma fórmula como para se ligar um liquidificador. Pessoalmente, não creio que seja possível definir como essas realidades relacionadas à obra de Deus “funcionam”.

TEOLOGIA SISTEMÁTICA, SOMENTE NAS CARTAS DOUTRINÁRIAS

Desejo mostrar-lhe que a doutrina do Espírito Santo tem que ser erigida com base nas Cartas doutrinárias, não em Atos. Em primeiro lugar, não podemos construir doutrinas em Atos e confirmá-las nas Cartas. O contrário é que é o certo. Em Atos há somente fatos, não a interpretação teológica deles.

A que as Cartas nos apresentam sobre o recebimento do Espírito Santo tem a ver sempre com a pregação da Palavra de Deus. Leia Romanos 10:17, onde se diz que a fé salvadora “vem pelo ouvir, e pelo ouvir a Palavra de Deus”. Observe ainda o que diz Gálatas 3:2 e 5, onde está registrado que o Espírito é concedido quando as pessoas estão ouvindo a Palavra com fé. Paulo pergunta: “... recebestes o Espírito pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?”. Atente sobretudo ao v.5: “Aquele, pois, que vos concede o Espírito e que opera milagres entre vós, porventura o faz pelas obras da lei, ou pela pregação da fé?”

O que Paulo está dizendo é que “a fé vem pela pregação, e a pregação pela palavra de Cristo” (Rm. 10:17).

E mais, quando ouvimos a Palavra de Deus e ela produz fé no coração, o Espírito do Senhor vem sobre nós ─ isto acontece na experiência Primeira, no Encontro, a que chamamos regeneração e conversão. O que também faz sentido com Atos 10:44, que revela que o Espírito Santo do Senhor caiu sobre todos os que ouviram a Palavra na casa de Cornélio, na hora da pregação. A salvação, portanto, vem com a invocação de Jesus, como está dito em Romanos 10:13: “Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”. Isto implica a invocação do Espírito Santo. E... “o Pai celestial dará o Espírito Santo àqueles que lho pedirem” (Lc. 11;13).

O Espírito Santo é concedido àqueles que ouvem a Palavra de Deus com fé. Isto na experiência primeira, quando o Espírito vem selar, salvar, regenerar, colocar-se como penhor na alma de todo aquele que crê em Jesus (Ef. 1:13-14). Portanto, qualquer recebimento do Espírito Santo ─ teologicamente falando ─ tem a ver com a pregação das Escrituras. Sem ela não há fé salvadora. Sem fé salvadora o Espírito não se derrama em selagem, em regeneração salvadora no coração.
Se todos os que são de Cristo têm o Espírito Santo (conforme diz Rm. 8:9: “E se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele”), então qual é a experiência cristã que deve receber o nome de batismo com o Espírito Santo?

Próxima postagem: O batismo com Espírito Santo conforme o Novo Testamento. 


terça-feira, 31 de outubro de 2017

Jornal Nacional 30/10/2017 500 anos da Reforma Protestante Fiéis do mund...

Os 500 anos da Reforma Protestante - entre a celebração e a reflexão crítica


Acabo de voltar de ver novamente o filme Lutero, produzido no ano de 2003 e não tem como não se emocionar. O filme é de muito bom gosto. Retrata Lutero de modo suficientemente humano para que aquele que nada sabe de sua vida tenha uma boa idéia de quem ele foi. Além disso, esteticamente, a produção é refinada, com uma bela fotografia, com cenários ótimos, e com reconstituição bem realista dos fatos com devem ter sido no Século XVI.

É verdade que seria impossível se produzir um filme mais profundo sobre a pessoa do Reformador, e que incluísse mais de seus conflitos, angustias, rupturas e decisões de santa profanidade, todas elas necessárias quando se trata de quebrar paradigmas da morte instalados diabolicamente “em nome de Deus”. Entretanto, o que foi descrito é mais que suficiente para que se veja como foi a Reforma, do que ela pretendia libertar os seres humanos, e, também, no que nós, Reformados e Evangélicos, nos tornamos no curso dos séculos, negando a Graça de Deus e a Palavra da Vida, e voltando às práticas fetichistas, canônicas, e legalistas das quais aquele evento histórico pretendia nos libertar.

A ironia de toda a história é que a Reforma Protestante acabou por, de certa forma, salvar a Igreja Católica da força obscurantista que haveria de destruí-la, caso a Reforma não lhe tivesse servido de advertência histórica quanto ao fato de que há limites para o abuso humano feito em nome de Deus. De fato, hoje, a Igreja Católica é bem menos obscurantista que a Igreja Evangélica, isto é se não tomarmos em conta as poucas exceções Reformadas que não se deixaram levar pelo doutrinarismo elitista e jactante dos Protestantes, ou pelo ritualismo mecânico, ou pelo engessamento do próprio espírito da Reforma à letra da Reforma. 

Fora essas poucas exceções ainda remanescentes do que a Reforma propôs, todos os demais, tanto Protestantes Históricos quanto os Evangélicos Tradicionais ou Pentecostais, entregaram-se ao espírito Católico Medieval, e que Hoje se faz representar em sua forma mais desgraçadamente excelente pela Igreja Universal do Reino de Deus, a qual, sinceramente, é a maior corruptora contemporânea do que o Evangelho de Jesus propõe. Sim, quem quer que vá ver Lutero não deve pensar na Igreja Católica, que, em si mesma, sofre o seqüestro histórico que as suas próprias leis e cânones paralizantes e moralistas criaram para ela própria. Não, ao se ver Lutero, a fim de entender a sua mensagem contemporânea no nosso país e no mundo, tem-se que pensar no espírito pagão, sincretista, fetichista, e anti-graça ensinado de modo massivo pela IURD e assimilado por boa parte dos Evangélicos. 

Ora, quanto a isto, quero deixar claro que não digo nada pessoal contra ninguém—Deus o sabe! Todavia, seja qual for o preço a pagar pela declaração da verdade do Evangelho, digo a quem interessar que para mim já há muito não me é possível deixar de falar essas coisas, e, tanto mais quanto os dias se passam, mais claro fica para mim que esta é uma hora de grande decisão. Pelo amor de Deus!

Quem tiver olhos, veja. Quem tiver ouvidos, ouça. E quem tiver coração e fé, seja bravo e corajoso, e rompa em sua própria vida todos esses grilhões do medo e da catividade que sobre nossos ombros foram postos por aqueles que da Reforma quiseram manter apenas a cisão com a Igreja Católica, vindo eles próprios a tornar-se algo muito pior e mais feio do que o que havia na Idade Média. 

Ora, é verdade que já não se pode matar com o descaramento daqueles dias. No entanto, o que se faz em nome de Deus é muito pior, visto que é absolutamente incompatível não só com a Palavra, mas com os tempos e suas luzes de esclarecimento. Hoje não se vende mais o céu, mas sim a Terra. As nossas indulgências já não têm a ver com a salvação, mas com a prosperidade terrena. Assim, não busque por relíquias sagradas entre nós, e nem busque por bulas papais, mas sim enxergue o sal grosso, as campanhas de prosperidade, as barganhas com Deus—e, sobretudo, veja como tudo era e continua a ser movido pela dinheiro e pelo poder. 

Sim, o que digo acerca da “igreja” é minha declaração contra a bruxaria que se faz em nome de Jesus, oprimindo o povo, criando dificuldades a fim de vender salvações. Sei que os tempos são os mesmos. Todavia, sei que mais do que nunca se precisa de uma Revolução Espiritual entre nós, sob pena de que vejamos a Nova Era e todas as filosofias orientais dominarem a Terra, e isto apenas porque o Cristianismo insiste em não se converter à Graça de Deus, pois, prefere o poder que alcançou na Terra do que os tesouros do Reino de Deus. 

Veja Lutero e tente se enxergar. Veja Lutero e tente discernir o nosso tempo. Veja Lutero com olhos atuais, e você saberá do que estou falando. 

Todavia, é necessário expandir o tema da Reforma para algo que é também muito importante; ou seja: a desbeatificação de Lutero, a fim de que haja a desbeatificação da Reforma.

Para os Protestantes Reformados [e também o seu subproduto: o mundo evangélico] Lutero é uma espécie de Elias ou João Batista [esse é o significado]; e a Reforma é uma espécie de Pentecoste Doutrinário; ou seja: um pentecoste de intelecto e letras.

Ora, é inegável o impacto histórico, social, econômico, ideológico, intelectual, psicológico, ético, e de projeto de sociedade [que seria de democracia capitalista] que a Reforma provocou.

De fato, a coragem que se demanda desta geração é bem maior do que aquela que fez com que camponeses oprimidos pelo papado de Roma tiveram que ter a fim de iniciar a Reforma. Digo isto porque ‘ali’ a mudança não era radical. 

A Reforma arrancou os ídolos do lugar do culto, e os retirou da devoção dos fiéis; aboliu o papado, acabou com boa parte do clero conforme a formatação católica, e afirmou que a Graça, Cristo, a Escritura e a Fé eram os ‘pilares’ sobre os quais a “igreja” deveria ter seus fundamentos.
 

No entanto, a Reforma não se viu livre das técnicas gregas de ‘fazer teologia’ e suas sistematizações, e nem abriu mão do logicismo grego, antes utilizando-se dele a fim de criar seus próprios credos, dogmas, doutrinas e leis morais.
 Autores como Caio Fábio chegam a afirmar que a Reforma é um Catolicismo que fez Dieta. 

Conhecer os escritos de Lutero e sua vida é então um exercício fascinante para qualquer um que se interesse pela psicologia do homem da Reforma. E mais: pela alma coletiva que se estabeleceu no movimento Reformado e isso muito tem a ver com o próprio espírito separatista de Lutero.

Lutero foi um homem; e nada além de apenas um homem. Ele não era o homem moralmente mais ilibado de sua sociedade [longe disso]; nem o mais culto; nem o mais inteligente; nem o mais sábio [a sabedoria andou muito longe dele muitas vezes], nem o mais influente; e menos ainda o mais “adequado”; pois, psicologicamente era um homem com muitos tormentos; e, depois de conhecer a Graça, ainda assim sofreu algumas seqüelas de outros tempos.

De fato, Lutero foi o pivô, o elemento histórico e fenomenológico de uma força Inconsciente Coletiva que estava pronta para derramar-se sobre a Europa já fazia alguns séculos; embora nos últimos cem anos antes de Lutero a tal força tivesse ganhado muito mais intensidade com os pré-reformadores; todos eles pessoas bem mais equilibradas que o Reformador alemão.

Assim, Lutero não é um Paulo; ele está mais para um Gideão; para um homem apanhado pelas circunstancias e que teve seu papel beneficamente superlativizado pelas perseguições que sofreu; de modo que um Lutero “deixado”, não perseguido, teria sido um Lutero sem significado histórico.

Quando sua angustia de alma foi aplacada um pouco pelo entendimento do texto de Paulo aos Romanos (e depois aos Gálatas), sua insurgência contra Roma veio misturada com muitos elementos convergentes — a saber: o clamor das ruas, a insatisfação de muitos clérigos, a necessidade que alguns principados europeus tinham de ter um motivo religioso que os permitisse romper com o papado por uma causa nobre (e a “Reforma” lhes pareceu ideal); e, sobretudo, pela perseguição romana, a qual deu a ele [Lutero] o imediato status de inimigo qualificado do maior poder da terra: a Igreja de Roma.   

De fato foi Roma quem promoveu a Reforma, e não Lutero.

Quanto mais se lê sobre Lutero (ou, sobretudo, cartas, sua correspondência com amigos, príncipes e reis), mas me convenço do seguinte:

1.          Ele era um homem em busca de libertação para suas pulsões sexuais descomunais;

2.                Ele revoltava-se com a opressão da Igreja sobre o povo;

3.                Ele foi impactado intelectualmente pela certeza de que se Paulo estava certo, a Igreja de Roma estava errada;

4.                Ele não hesitou (tanto por convicção como também por revolta) em enfrentar Roma com a verdade do Evangelho;


5.                Uma vez que isso foi feito o próprio Lutero se tornou símbolo de algo maior do que ele;

6.                O amparo que teve para traduzir a Escritura para o alemão popular deu ao que iniciara o poder revolucionário que o movimento ganhou;


7.                A alquimia do movimento misturava piedade pessoal do povo, muita revolta popular, uma grande dose de interesse político numa eventual ruptura com Roma, e o grito libertário de Lutero, o qual se fundamentava na Escritura, e, nela, sobretudo, em Paulo.


Entretanto, a inadequação humana dele para com o que de fato aconteceu exclusivamente pela Graça Soberana, é a melhor expressão da liberdade de Deus usando ou qualquer um; dependendo de Seu desígnio.




segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Existe “pentecostalismo reformado”?


A Reforma Protestante, logo em seu início, se dividiu em dois grupos: a Reforma Magistral, com o apoio do Estado, e a Reforma Radical, sem o apoio e sob a perseguição do Estado. No primeiro grupo, houve três vertentes principais: a evangélica, a reformada e a anglicana.  O pentecostalismo, como um fenômeno do século XX, não é, obviamente, derivação direta nem da teologia dos evangélicos (luteranos), nem da teologia reformada (calvinistas), nem da teologia anglicana e nem da Reforma Radical, embora algumas ênfases sejam parecidas, especialmente com os espiritualistas. O pentecostalismo moderno é um movimento tardio e nasce no seio do Movimento da Santidade, embora, logo em seu início, tenha ganhado autonomia em relação à teologia wesleyana. Mas, cabe ressaltar, o pentecostalismo não era a proposta de uma nova roupagem teológica, mas sim, da vivência carismática no seio da igreja para o impulso missiológico.

Como uma teologia globalizante, o pentecostalismo permeou várias tradições cristãs. O Movimento Carismático, ou seja, a pentecostalização das igrejas históricas, já é um fenômeno amplamente conhecido, estudado e observado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Inclusive, a força mais dinâmica da Igreja Católica e da Igreja Anglicana, por exemplo, são carismáticas. Hoje, a “comunidade pentecostal”, ou seja, pentecostais clássicos, carismáticos e neopentecostais representam mais de 700 milhões de cristãos de todo o mundo. Diante de um fenômeno crescente tão espantoso, o pentecostalismo deixou em parte de ser objeto de rejeição para ser uma marca desejada.

“Pentecostal Reformado”

Hoje há um fenômeno novo no mundo teológico. Muitos jovens que, outrora conheceram a fé cristã em alguma igreja pentecostal, agora abraçam a teologia reformada. Obviamente, não há nada ilegítimo nisso. Normalmente, nesse processo, esses jovens compram todos os aspectos da teologia reformada de matriz presbiteriana (soteriologia calvinista, aliancismo, amilenismo, princípio regulador do culto etc.), mas ainda se identificam como pentecostais. Ora, isso é possível? Em princípio, a resposta é afirmativa. O pentecostalismo é, acima de tudo, uma pneumatologia e, sendo assim, é de fácil adaptação com outras matrizes cristãs. O grande teólogo pentecostal William W. Menzies escreveu que não há nada essencialmente novo na teologia pentecostal em relação à teologia clássica, mas, como movimento, deu a devida ênfase a um aspecto que andava esquecido na história da cristandade[1].

Como cristã, a teologia pentecostal tem como motivo temático central a pessoa de Jesus Cristo, portanto, é uma fé cristocêntrica. Ao mesmo tempo, o seu motivo orientador central é a pneumatologia. O teólogo assembleiano Amos Yong lembra: “O batimento cardíaco da espiritualidade pentecostal é a experiência dinâmica no Espírito Santo”[2]. Na teologia pentecostal, é Cristo quem batiza no Espírito Santo. Cristo também cura e virá iminentemente. A dimensão pneumatológica do pentecostalismo põe Cristo no centro numa expectativa escatológica forte – que é mais um elemento energizador da evangelização. A teologia pentecostal clássica ainda afirma que é o Espírito Santo quem batiza o convertido no Corpo de Cristo, selando-o numa nova aliança com Jesus no momento da conversão. A dimensão soteriológica do papel do Espírito, tão enfatizada pelo apóstolo Paulo, não é de maneira alguma despreza pelos pentecostais. São abundantes, por exemplo, obras de teólogos pentecostais sobre o fruto do Espírito. Essencialmente, o pentecostalismo ajudou a despertar a igreja ocidental a olhar para a pneumatologia como essencial, logo porque se trata de uma pessoa da Santíssima Trindade, mas jamais perdeu a dimensão cristológica da fé protestante. 

Agora, sobre a qualidade doutrinária do “pentecostalismo” reformado, observo cada vez que os “pentecostais reformados” são, na verdade, apenas reformados continuístas, ou seja, acreditam que existe a possibilidade de exercer dons espirituais hoje, mas não veem distinção entre o Batismo no Espírito e a conversão. Alguns são até carismáticos, pois defendem alguma “experiência do Espírito”, mas jamais poderiam se intitular como pentecostais, no sentido clássico do termo, pois negam a natureza do Batismo no Espírito Santo como um dom de capacitação evangelística que é dado ao crente; dom esse, vale lembrar, que não se confunde com a conversão.

Em sua maioria, não estou generalizando, eles entendem bastante de teologia reformada, mas pouco de teologia pentecostal. Já leram inúmeros livros de teólogos reformados, mas desconhecem o universo literário do pentecostalismo. É provável que sejam mais familiarizados com os livros do John MacArthur Jr. do que de Stanley M. Horton, por exemplo. Eles se intitulam pentecostais não porque são leitores e produtores de teologia do pentecostalismo, mas simplesmente porque estão ou já foram de alguma igreja pentecostal. Alguns dizem que são pentecostais só porque a liturgia de suas igrejas é mais, digamos, animada, do que em relação a um tradicional culto puritano. O pentecostalismo deles se resume a uma vivência litúrgica, mas teologicamente são totalmente fechados no pacote de Westminster.

Sem a crença do Batismo no Espírito, seja ele evidenciado com o sinal da glossalalia ou não (logo porque não há consenso entre os pentecostais nesse aspecto), não é possível alguém afirmar que alguém é pentecostal. O dom do Batismo, como capacitador evangelístico, é essencial para a crença pentecostal. O pentecostalismo é uma pneumatologia missiológica. É uma teologia que vai além da eclesiologia dos carismas, embora seja esse o segundo ponto mais importante de sua modesta estrutura.  O continuísmo, repito, é parte essencial do pentecostalismo, mas o pentecostalismo não se resume ao continuísmo. O pentecostalismo não está voltado apenas para a capacitação espiritual dos dons que visam a edificação da igreja no contexto litúrgico, mas, acima de tudo, busca o revestimento de poder para sair às ruas e vielas deste mundo numa proclamação evangelística com autoridade, coragem sobrenatural e milagres. 

É observável que o pentecostal reformado, como boa parte dos teólogos da tradição reformada, tende a ler os escritos de Lucas à luz das epístolas de Paulo. É necessário cuidado com a “paulinização” do Novo Testamento. Embora a importância de Paulo seja incalculável, ele não é o único autor-teólogo do Novo Testamento. Uma investigação exegética séria, por exemplo, tentará entender os pontos em comum e as ênfases diferenciadas das teologias neotestamentárias, como a paulina, a lucana, a maetana, a joanina etc. A Bíblia, embora seja uma unidade inspirada pelo Santo Espírito, não suprimiu as perspectivas de cada autor.  Se Deus quisesse uma única perspectiva sobre determinado assunto, certamente a Bíblia seria dada pronta, como o Alcorão no Islã, ou então teria um único autor humano. A Sagrada Escritura é uma unidade orgânica, como afirmavam os pais da Igreja. Um exemplo clássico de como a teologia reformada sobrepõe Paulo a Lucas é a forma como entendem “cheios do Espírito” em Atos 2 como paralelo a ser “cheio do Espírito” em Efésios 5[3]. É condição sine qua non que o teólogo que se diz pentecostal seja alguém ciente da importância da pneumatologia lucana, algo que exegetas do passado como Hermann Gunkel, Eduard Schweizer, Howard M. Ervin e I. Howard Marshall  já tinham percebido. 

Outro ponto importante é que se a teologia reformada for entendida como uma espécie de teologia pronta, o que é uma mistura de ingenuidade com arrogância, qualquer pentecostalização, por mínima que seja, será uma deturpação da própria teologia reformada. Não são poucos reformados puristas que veem com ojeriza qualquer um que se intitule como “reformado pentecostal”. Creio que quem assim pensa está equivocado. O equívoco não é nem tanto pelo sectarismo infantil, mas sim porque esses puristas olham o pentecostalismo como uma cosmovisão concorrente. O pentecostalismo não se pretende como uma teologia que engloba todos os grandes temas da fé protestante, portanto, jamais será um sistema complexo adversário da teologia reformada. O pentecostalismo tem uma ambição bem mais modesta. Da mesma forma, rejeito a ideia que sejam sistemas incompatíveis, defendida por alguns pentecostais, pelos motivos já apontados. Embora acredite que seja possível alguém ser pentecostal e reformado, na prática, conheço pouquíssimos irmãos que são pneumatologicamente pentecostais e reformados no restante (soteriologia, escatologia, etc.). 

Exemplo de diferença no entendimento da mesma expressão

Observe que a Renovação Católica Carismática (RCC) não recebe o nome de Renovação Católica Pentecostal, isso porque conforme o pentecostalismo permeou outras tradições, essas tradições também adaptaram crenças pentecostais primitivas – como a do Batismo no Espírito Santo. Na RCC, o batismo no Espírito Santo, diferente dos pentecostais clássicos, não é entendido – puro e simplesmente – como um revestimento de poder para testemunho evangelístico, mas como uma efusão recebida mediante o sacramento que dá ao cristão a plenitude do Espírito (santificação, dons espirituais e mais intimidade com Cristo). No pentecostalismo clássico, o Batismo no Espírito Santo difere da plenitude do Espírito. O Batismo no Espírito Santo e os dons espirituais fazem parte da plenitude do Espírito, mas a plenitude do Espírito não se resume ao Batismo ou aos demais dons. A plenitude do Espírito engloba, especialmente, o fruto do Espírito, a santificação e a maturidade. O Batismo no Espírito Santo não é santificação, como lembra o teólogo pentecostal Antonio Gilberto[4], e nem maturidade cristã, como escreveu William e Robert Menzies[5]. Outro grande teólogo pentecostal, como Donald Gee, chegou a afirmar sobre o Batismo no Espírito Santo: “É inútil pensar que qualquer ‘bênção’ ou ‘experiência’ possa substituir um ‘andar’ contínuo no Espírito – por mais útil que tal bênção possa muitas vezes ser”[6]. Veja que, embora os católicos carismáticos e os pentecostais clássicos usem a nomenclatura “recebi o Batismo no Espírito Santo”, eles estão afirmando experiências diferentes.

Dessa forma, a exemplo dos católicos, os reformados continuístas deveriam buscar uma nomenclatura mais adequada para o conjunto de crenças que defendem. Assim, evitariam uma confusão com outros grupos dentro da “comunidade pentecostal”. O esclarecimento em conceito não visa, pelo menos no meu caso, o acirramento de disputas, mas a valorização da didática e o aprendizado honesto. Como em qualquer casamento, a união saudável é pautada no entendimento, respeito e acolhimento das diferenças, e não na supressão dos detalhes divergentes.  

Referências Bibliográficas:

[1] MENZIES, William. The Methodology of Pentecostal Theology: An Essay on Hermeneutics. Em: ELBERT, Paul. Essays on Apostolic Themes. 1 ed. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 1985. p 1.

[2] YONG, Amos. The Spirit Poured Out on All Flesh. 1 ed. Grand Rapids: Baker Academic, 2005. p 13.

[3] Exemplo dessa misturada pode ser lida no livro: NICODEMUS, Augustus. Cheios do Espírito. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2007. pp 36-41. Sem nenhuma metodologia clara, Nicodemos diz que Atos  2.37-41 é normativo, mas 2.1-4 não o é. A escolha do que é normativo ou meramente histórico se baseia na mera arbitrariedade do autor.

[4] GILBERTO, Antonio. Verdades Pentecostais. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p 60.

[5] Leia o capítulo 15 no livro No Poder do Espírito: Fundamentos da Experiência Pentecostal (Editora Vida).

[6] GEE, Donald. Como Receber o Batismo no Espírito Santo. 6 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2000. p 61. É sempre útil lembrar que o título original da obra é Pentecost. 

Fonte:  https://teologiapentecostal.blog/

Meu comentário: Como a postagem já é grande, vou deixar para o próximo post, para deixar meu posicionamento sobre o assunto, já adiantando que ele será em outra linha de pensamento.