quarta-feira, 8 de maio de 2019

Os evangélicos ficaram poderosos

De um grupo numericamente pequeno, o movimento evangélico cresceu. David Stoll, sociólogo norte-americano, tratou dessa expansão por toda a América Latina, com interesse especial pelo Brasil. As razões de seu pendor são óbvias: os dois países com maior número de evangélicos são Chile e Brasil. Só que, de acordo com suas pesquisas, o Brasil vem ganhando de goleada do Chile. As igrejas não param de aumentar – 77% entre 1960 e 1970. Logo na década seguinte, entre 1970 e 1980, o rol de membros das igrejas pentecostais, neopentecostais e gospel saltou em 155%. De lá para cá, os números permanecem estratosféricos. Basta trafegar por uma avenida na periferia dos centros urbanos.
Por conta dessa quantidade, o mundo secularizado da Europa e dos Estados Unidos se impressiona. E, localmente, os políticos salivam. O sonho aconteceu. Os crentes chegaram ao primeiro escalão do poder, ganharam acesso à presidência, emplacaram uma agenda moral e deslancharam a tão importante “guerra espiritual contra os ataques do Diabo na família e nos costumes”, e concretizaram os importantes “valores judaico-cristãos”. 
Andar pelos corredores do Palácio do Alvorada a convite da primeira dama, realizar culto no auditório da Câmara, impor as mãos sobre a cabeça das autoridades, ou exorcizar demônios de um gabinete, podem parecer ambições jecas. Não são. Elas revelam a ponta de um iceberg teológico e ideológico, consolidado há anos entre os evangélicos. Escolas dominicais, cursos de teologia à distância, seminários e conferências martelaram sem cessar alguns fundamentos: todos estão condenados ao inferno e a igreja tem a mensagem que salva; cultura, literatura, música, arte em geral são expressões de um mundo caído; só os verdadeiramente salvos podem ajudar o país a encontrar a resposta para seus problemas; Israel afere quando Jesus voltará para arrebatar até as nuvens os que são dele; o planeta em ruínas é sinal de que o Apocalipse está às portas.
Essas ideias estão por baixo da agenda de conquista do poder econômico e  político. Os líderes sequer levam em conta que tal agenda foi, historicamente, um desastre. A sedução de colocar alguém que, mesmo sem qualquer afinidade com o cerne da mensagem do Evangelho, consiga implementar as aspirações do movimento, foi suficiente para cegar sobre as ameaças do poder. 
Sendo assim, o desastre que espreita o movimento guarda o potencial de ser enorme; ter acesso ao gabinete do presidente é uma bênção, tão inimaginável para quem já foi da periferia do sistema, que os alarmes são desconsiderados. 
Por isso, a multiplicação numérica dos crentes já se mostra problemática. Com esse noivado de crentes e políticos, algumas das lógicas que faziam todo sentido dentro do gueto vieram a público. Muitos se espantaram com a  “tosquice” dos argumentos sobre sexualidade, marxismo cultural e ameaça comunista. Poucos sabiam que esse nível de paranoia –  “o diabo usa o sexo para acabar com a família” – vinha de longa data. A demagogia moralista que alimenta a “cruzada da luz contra as trevas” era comum nas igrejas. 
Os evangélicos abocanharam enormes fatias demográficas, mas cavaram ainda mais fundo o fosso que os separa dos formadores de opinião. Ao evidenciarem conteúdos rasos e moralistas, alienaram-se dos meios acadêmicos e de jornalistas. Os evangélicos ficaram poderosos financeiramente, sem nunca abandonarem as âncoras que só permitem retroalimentação de própria produção. Essa é a lógica do fundamentalismo: “ninguém mais tem a verdade, que nos foi confiada por Deus, portanto, temos o que dizer e não precisamos ouvir ninguém de fora do nosso contexto”. Resultado: uma vez conhecidas as ideias que fundamentam o movimento evangélico, só resta constrangimento.
Quem, fora da bolha gospel, leva em conta a produção cultural dos crentes? Quem compra seus livros? Quantos pastores conseguem pensar sem a camisa de força institucional? Nos últimos meses de 2018 ficou patente até entre os próprios crentes: multidões se contentam em repetir um discurso de dominação. O que se viu no país foram pastores (bem como pessoas comuns) inebriadas com a exuberância de um discurso violento, inclemente e distante do espírito do Sermão do Monte. 
A expansão numérica conquistou o poder político, mas o desastre virá e será iminente. Sem alcançar os poetas, sem ressonância entre jornalistas, sem respeito entre acadêmicos e sem o respeito de jovens, evangélicos de vários matizes continuarão como protagonistas em programas de humor nas redes sociais; e acabarão corroborando com uma generalização ruim: todos os pastores são manipuladores e as igrejas não passam de espaços para extorquir dinheiro.
O filósofo dinamarquês Soren Kierkgaard escreveu uma parábola que pode ajudar. Ele conta sobre um grande circo que acampou nas redondezas de uma cidade. A série de espetáculos começaria naquele dia. Na tarde da estreia, no momento em que os malabaristas, trapezistas e mágicos se preparavam para o ensaio final, começou um incêndio devastador. O palhaço já fantasiado, pintado e preparado para o show, precisou sair correndo rumo à cidade em busca de socorro. 
Desesperado, o pobre homem gritava pelas ruas e praças. – Socorro, socorro, o circo está em chamas. Quanto mais subia o tom de voz e quanto mais corria de um lado para o outro, mais as pessoas se divertiam. Todos achavam que era um excelente ator. Ele insistia de joelhos: – Por Deus, por Deus, ajudem, o circo está em chamas. Os meninos gargalhavam. Os mais velhos faziam choça: – Quão extraordinário, diziam, um ator que sabe chorar para fazer graça. O circo acabou consumido pelo fogo.
Moral da história: vestido de palhaço, ele fazia rir, mas não conseguia ir além. Assim, quando religião perde credibilidade ética e deixa de inspirar, fica sem autoridade para dizer nada. Não, não foi ataque do Diabo que colou nos pastores a fama de picaretas, aproveitadores do sofrimento do povo. Basta ligar o rádio em qualquer programa religioso, ou sentar e assistir ao culto numa igreja neopentecostal para saber. No rescaldo do grande incêndio que ameaça o Brasil, o grito dos evangélicos não será ouvido.
Resta esperar que pequenos segmentos de resistência se organizem entre igrejas que ainda mantêm compromisso com o evangelho. E que, da periferia do sistema, surjam novas lideranças que não desejam fatias do poder, apenas oportunidade de servir.
Fonte: www.ricardogondim.com.br/

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Vivendo pela fé


As pessoas, embora confessem que vivem pela fé, na maioria das vezes vivem pela alma, pela emoção e pelas sensações e impressões. O que é desastroso no dia-a-dia.
Viver pela fé é não viver por vista, por emoção, por sensação, por circunstância, por impressão, por alegrias ou por sucesso. A gente vê isso claramente no Salmo 103, onde o salmista tem uma conversa consigo mesmo, onde o seu espírito fala com a alma, e a exorta.
 
Viver pela fé é ver o invisível apesar de todas as visibilidades negativas. É subjugar a alma ao espírito. É tirar a alma de seu estado de submissão natural aos poderes do Inconsciente e de suas pulsões, e pela consciência que advém da certeza da fidelidade de Deus.

É sentir as águas invisíveis de um dilúvio de emoções nos afogando, e mesmo assim, tratá-las como miragem ou como truques da subjetividade frágil e impressionável da alma. É, no pior dia, poder dizer: “Mais são os que estão conosco do que os que estão com eles”.

É afirmar que a vitória que vence o mundo é a nossa fé. É cantar louvores entre lágrimas. É ver a Nova Jerusalém mesmo em dias de Apocalipse. É ver na morte, qualquer morte, apenas um portal para a Vida. É saber que nada pode nos separar do amor de Cristo: nem a vida, nem a morte, nem o pecado, nem o diabo, nem qualquer criatura, e nem qualquer poder ou ambiente de mal.

O problema, como disse, é que a alma é retardada. Ela é tarda para crer, como disse Jesus. Muitas vezes o espírito já viu a vitória, mas a alma ainda chora lutos de defuntos que já ressuscitaram. 

Elias é um bom exemplo. Pedira a Deus que golpeasse a Baal, deus das fertilidades, a fim de que pela ausência de chuva os supostos poderes de Baal fossem relativizados. Enquanto isso, todos os profetas genuínos haviam sido mortos, e ele peregrinava e se escondia. Quando, porém, chegou a hora do enfrentamento, no espírito, ele estava pronto; e convocou o povo e os profetas de Baal e do poste-ídolo e os venceu. Fogo caiu. O povo disse “Só o Senhor é Deus!” — e ele se alegrou no Espírito de Deus. Mandou dizer a Acabe que a chuva viria como temporal. E correu mais que carruagens, tamanha era a sua euforia.

Mas quando Jezabel, agora já enfraquecida pela desmoralização de Baal, mandou dizer que o mataria, ele que a tudo e todos enfrentara, refugiou-se a 580 quilômetros de distância, em Horebe (indo à pé) e fez um discurso da alma retardada; posto que o que ele disse a Deus na caverna teria feito sentidos três anos antes; mas agora, depois de ter sido vindicado por Deus mediante uma vitória retumbante, era a manifestação de um coração entregue às emoções atrasadas. 

O espírito está pronto, mas a “carne” (alma, emoções, impressões) é fraca e sempre atrasada. 
Assim, ele se deprime com três anos de atraso; pois, enquanto estava sob a tensão proveniente da perseguição, a alma não tinha tido ocasião de se expressar. Agora, porém, depois de haver prevalecido, deu a si mesmo o direito retardado da autopiedade. 

É por isso que Paulo diz que nenhuma dimensão pode nos separar do amor de Deus, mas não inclui o passado na lista de Romanos 8. E a razão é simples: a alma se alimenta do passado. E conquanto nem o passado possa nos separar do amor de Deus, ele, entretanto, pode nos separar da alegria vigente do amor de Deus. Posto que a alma é retardada — em razão de se alimentar de dores antigas, na maioria das vezes. 

Daí a Psicologia lidar sempre com o passado, pois é dele que vêm as falsas impressões que pretendem cristalizar nossa alma em estados que já não são.
90% das angústias humanas nada têm a ver com hoje, mas com ontem. Portanto, para que se viva pela fé, tem-se que deixar de ser movido pelo ontem —e até pelo hoje circunstancial— e aprender a viver no dia chamado Hoje, o qual, mesmo no pior hoje, alimenta-se da Promessa que é; e que não muda nem em razão de traumas passados ou de impressões do presente.

Quem crê nisso ganha e perde, e não se impressiona. Chora lutos, mas não se sepulta junto. Lamenta perdas, mas não se faz perdido. Constata a realidade, porém, pela fé, a transcende.

No dia em que o povo de Deus de fato andar pela fé, praticamente tudo aquilo que hoje enche as clínicas psicológicas e os gabinetes pastorais já não existirá como problema. Pois o que se vê é que a maioria sofre de miragens porque não anda pela fé, mas apenas pelas sensações e impressões.

A fé, porém, é a certeza de coisas que se esperam e a firme convicção de fatos que se não vêem (Hebreus 11:1).

Pr. Juber está ministrando no Simpósio Nacional de Missões - Senami - Salvador/BA