Quem espera densidade em qualquer das tantas “mesas redondas” de qualquer programa de entretenimento na TV aberta, seja de momentos liderados por Ratinho ou Fernanda Lima; por Luciana Gimenez ou Ana Maria Braga; por Ronnie Von ou Fátima Bernardes; por Cátia Fonseca ou Pedro Bial, certamente ficará frustrado. Não poderia ser diferente com a edição do Programa da Rede Globo “Na Moral”, amplamente divulgada nas redes sociais, que se dedicou ao tema do Estado Laico, e, por tabela, da liberdade de crença, gravada há duas semanas e que foi ao ar por 40 minutos na noite da quinta, 1 de agosto de 2013.
A edição permitiu apenas ponderações pontuais de um padre, um pastor evangélico pentecostal, um babalaô (Candomblé) e um ateu, tudo embalado por canções do sambista Arlindo Cruz, que se declarou “espírita, do Candomblé” mas também católico, frequentador de cultos com a mãe evangélica e simpatizante do budismo. Entradas gravadas do Ministro do Supremo Tribunal Federal Aires Brito simularam o aprofundamento do tema “estado laico” do ponto de vista jurídico. O vereador evangélico que, quando presidiu a Câmara em João Monlevade (MG), retirou o crucifixo da sala de sessões e, por isso, foi alvo de manifestações e processos, participou presencialmente e prestou depoimento. Trechos de entrevista gravada com estudante do ensino médio ateu que passou a sofrer bullying por se recusar a orar o “Pai Nosso” com a turma nas aulas de uma professora de Geografia também foi base para o debate da mesa.
As performances
A maior celebridade presente na “mesa redonda” era o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, consultor da Rede Globo para assuntos religiosos. Ele fez ampla campanha no Twitter para que seus fãs o assistissem. Eles próprios estão atribuindo os bons índices de audiência alcançados pela edição do programa à presença do pastor. De acordo com a coluna de Patrícia Kogut, no jornal O Globo, os 12 pontos alcançados foram record no horário (meia-noite às 00h37). É possível que estejam certos mas também é possível que o clima político do País, que desde março vem sendo embalado com tons religiosos (vide o caso Marco Feliciano – leia aqui – e as polêmicas provocadas pelo próprio Silas Malafaia com a Marcha pela Família em Brasília – leia aqui) somado à cobertura da mídia à visita do Papa e ao tema, como afirmado cima, tenha atraído a atenção de boa parte do público.
O pastor Malafaia tentou assumir uma postura mais equilibrada e serena em suas abordagens, e quando o fez, apresentou argumentos interessantes e curiosamente surpreendentes, como a crítica à postura da professora de Geografia que criou constrangimento a quem não queria orar com ela, ou a favor de que crucifixos estejam em repartições públicas como símbolo cultural, ou ainda como defensor da liberdade religiosa e crítico da perseguição às religiões afro-brasileiras. No entanto, quando palavras, em especial do participante ateu Daniel Sotto-Mayor pareciam lhe caber, como a crítica à Teologia da Prosperidade, da qual é pregador, o pastor Silas Malafaia retomou sua já conhecida retórica de palavras exaltadas, agressivas e debochadas. Sotto-Mayor caiu na “armadilha” do pastor, que lhe perguntou “quer dizer que todo pastor é rico?” desviando a crítica originalmente proferida. O participante ateu acabou por fazer a acusação do enriquecimento de pastores a partir da exploração da fé de pessoas, da qual se defendeu Silas Malafaia, com algum apoio de Pedro Bial.
O padre católico-romano Jorjão teve participação pouco enfática e indicou fazer uma parceria com o pastor Malafaia, que manifestava concordância com ele em diversas afirmações e vice-versa. Não houve discussão entre os dois. Quem pareceu estar mais à vontade, com postura beirando a de um pastor, foi o babalaô Ivanir dos Santos. Ele não só chamou participantes de “irmãos”, como, sempre com serenidade e respeito, denunciou a opressão e a perseguição histórica sofrida pelas religiões afro-brasileiras e o projeto de poder de membros da Frente Parlamentar Evangélica que já manifestaram desrespeito e discriminação ao demonizar a população de matriz africana e suas religiões não-cristãs. Ivanir dos Santos afirmou que isto não é democrático mas uma “semente do facismo”.
A parte mais interessante do programa aconteceu ao final quando um curioso convite foi feito ao pastor Silas Malafaia pelo representante do Candomblé: já que o primeiro havia declarado indignação com a perseguição religiosa e uma defesa da liberdade de crença, afirmando até que quem “invade terreiro tem que ir para a cadeia” (nítida crítica à Igreja Universal do Reino de Deus). O convite foi para que Silas Malafaia e outros líderes evangélicos participem da Marcha pelo Estado Laico e a Liberdade Religiosa, realizada em diversas cidades do País anualmente e está por acontecer. Ivanir dos Santos afirmou: “a maior demonstração que podemos dar de respeito e tolerância é ir juntos para a rua”. Ele declarou já ter participado de missas e de cultos em igrejas evangélicas mas que evangélicos se recusam a estarem no mesmo espaço que pessoas de religiões afro. Ele cobrou mais atitudes simbólicas e não só palavras, sob aplausos da plateia que ainda não havia se manifestado,
Silas Malafaia foi surpreendido com o convite destacado pelo apresentador: “O senhor está formalizando um convite para o pastor Silas Malafaia?” Depois de ouvir o “sim” de Ivanir dos Santos, com mais aplausos ao fundo, o pastor Malafaia afirmou que “não é necessário fazer uma caminhada com o outro para dizer que tolera o outro, porque a caminhada também tem viés de interesses políticos, de ONGs e de organizações”, engando a forma e do conteúdo das Marchas que ele tem organizado, em especial a de Brasília em junho passado. Mais uma vez exaltado, ressaltou que os evangélicos tem pontos que não negociam: a defesa do Estado laico, o não-privilégio a qualquer grupo e que não se massacre a religião de ninguém. O pastor declarou que aos evangélicos que defendem o Estado laico não interessa o que qualificou como “jogo visual”, pois andar juntos não significa concordar com o pensamento.
Para contrapor o pastor Malafaia, Ivanir dos Santos mencionou o valor das atitudes simbólicas como o exemplo do evangélico metodista Nelson Mandela que tomou um café com o seu carcereiro, antes de assumir o governo e comparou: “se um pastor importante como o senhor vai na caminhada dos religiosos a lição que se está mandando para a juventude, para a criança na escola, para não discriminar… é muito simbólico. (…) A intolerância não acaba só com retórica política vai acabar com ações concretas de sinceridade e amor”. Diante do desafio, o pastor Silas Malafaia procurou assumir o rumo da conversa, afirmando que os evangélicos também são perseguidos e discriminados e que ninguém ensina a ser tolerante mais do que eles com as escolas dominicais. Ele denunciou não serem os evangélicos chamados para debates, para uma conversa, Pedro Bial afirmou: “mas agora está acontecendo”, sob concordância do pastor. O líder evangélico afirmou: “E se o convite vier, eu estarei aqui para tantos quantos forem”. “E para a caminhada?” foi feita a pergunta, com a resposta do pastor: “quando não houver nenhum interesse político aí eu participo sem nenhum problema”.
Programa acontece em data simbólica
O edição do Na Moral foi exibida coincidentemente justamente na data em que a Presidenta Dilma Rousseff não cedeu a pressões de grupos religiosos (evangélicos, católicos e espíritas) e sancionou a lei aprovada em julho, por unanimidade, pelo Congresso Nacional que regulamenta atendimento na rede pública de Saúde à mulher vítima de violência sexual. Veja aqui o histórico.
O ponto mais polêmico do texto, de autoria da deputada Iara Bernardi (PT-SP), é o artigo que trata do atendimento às vítimas de estupro, determinando que a rede pública precisa garantir, além do tratamento de lesões físicas e o apoio psicológico à mulher, também os meios de evitar que ela tenha uma gravidez indesejada. Os religiosos entendem estar na expressão “profilaxia da gravidez” uma liberação para realização do aborto em qualquer período da gestação. As pressões sobre a Presidenta Dilma passaram por ameaças de campanha religiosa contra a reeleição dela em 2014.
O deputado federal presidente da Comissão de Direitos Humanos pastor Marco Feliciano já vinha fazendo ameaças à Dilma Rousseff para pressionar por vetos, atualizou o discurso no Twitter em 2 de agosto:
Fonte: Magali do Nascimento Cunha, no Mídia, Religião e Política, via Pavablog