O que as Escrituras nos contam sobre a
história desta “notável” judia que foi aprisionada.
NIJAY
K. GUPTA|28/MARÇO/2023
Image: Illustration by Mallory Rentsch / Source Images: WikiMedia
Commons
Cerca de uma
década atrás, quando minha família estava de férias em Roma, na Itália,
visitamos a Basílica di San Pietro in Vincoli (“São Pedro acorrentado”) — onde
turistas e peregrinos cristãos vêm para ver a famosa estátua de Moisés, obra de
Michelângelo, bem como um conjunto de cadeias que a tradição afirma terem sido
usadas pelo apóstolo Simão Pedro, durante sua prisão (Atos 12.3-19).
Mas não foram apenas apóstolos do sexo masculino que foram privilegiados com esse presente indesejável de algemas. Paulo nos diz em Romanos 16.7 que Andrônico e Júnia, sua esposa, foram ambos presos por causa de Jesus: “Saudai a Andrônico e a Júnia, meus parentes e meus companheiros na prisão, os quais se distinguiram entre os apóstolos e que foram antes de mim em Cristo” (ARC).
Dois elementos deste versículo têm sido objeto
de profundo escrutínio e vigoroso debate: Júnia era uma mulher? E ela era
realmente uma “apóstola”?
Com relação à primeira pergunta, houve um
intervalo de várias centenas de anos em que as traduções da Bíblia tratavam
essa pessoa como um homem (usando o nome Júnias — observe o uso da letra “s”),
principalmente porque era impensável que Paulo pudesse chamar uma mulher de
“apóstola”. Contudo, estudiosos da Bíblia redescobriram sua identidade feminina
nas últimas décadas, por várias razões, entre elas o fato de Júnia ser um nome
feminino popular no período romano, enquanto não havia evidências em absoluto
do nome Júnias.
E com relação à segunda pergunta, Paulo
reconhece que o casal era judeu como ele e seguiu a Jesus antes dele. Como
sabemos que Paulo passou a crer em Jesus não muito depois da ressurreição
(digamos, por volta de 33 d.C.), Andrônico e Júnia estavam entre a “primeira
geração” de líderes apostólicos cristãos.
De fato, a maioria dos pais e teólogos da
igreja primitiva, no segundo, terceiro e quarto séculos, tinham como certo que
(1) Júnia era mulher e que (2) Júnia era apóstola.
Como escreveu João Crisóstomo, teólogo e
pregador do século quarto: “Ser apóstolo é algo grandioso. Mas ser notável
entre os apóstolos, imagine que maravilhoso cântico de louvor isso é! […] De
fato, quão grande deve ter sido a sabedoria dessa mulher, para que ela fosse
considerada digna do título de apóstola”.
Orígenes, outro pai da igreja primitiva, perguntou-se se esse casal estava entre os 72 discípulos que foram enviados pelo próprio Jesus (Lucas 10.1; apóstolo significa “aquele que é enviado”).
Contudo, algo que muitas vezes é deixado de
lado na discussão em torno de Júnia é sua prisão e o que isso nos diz sobre
ela. A menção de Paulo a Júnia e a Andrônico, em Romanos, é muito mais do que
uma simples saudação de alguém que está distante. Paulo estava destacando
intencionalmente esse casal, a quem ele considerava cristãos que eram um modelo
de fé intrépida e exemplar para a igreja em Roma.
A cultura romana promovia um ideal de mulher
doméstica, quieta, obediente, charmosa e doce, que trabalhava com lã, cuidava
dos filhos e do lar. E, muito embora os primeiros cristãos também acreditassem
em um lar caloroso e estável, líderes como Paulo elogiaram entusiasticamente
Júnia, bem como seu marido, por seu serviço e seu sacrifício na linha de frente
do ministério do evangelho.
Paulo também celebra outro casal, Priscila e Áquila
— líderes de igreja doméstica que arriscaram a vida pelo evangelho — bem como
Febe, uma diaconisa da igreja. Ele ainda nomeia e elogia Epêneto como o
primeiro convertido asiático. Paulo exalta essas e outras figuras humanas por
sua fé corajosa — e, para alguns, ele aplaude sua fidelidade na prisão.
Olhando para as próprias experiências de
Paulo, vemos que ele reconhece numerosos encarceramentos e menciona lado a lado
a tortura, de um só fôlego (2Coríntios 6.5; 11.23). As prisões eram um dos
lugares mais sombrios e horrendos da sociedade romana — então, o que uma mulher
como Júnia estaria fazendo lá?
Entre os muitos milhares de textos gregos e
romanos que temos da Antiguidade, quase não temos registro de mulheres em
prisões romanas, que eram destinadas a manter encarcerados supostos infratores
acusados de crimes graves, como assassinato e traição. No caso de pequenos
crimes, o réu era multado ou espancado. No caso de uma ré, costumava ser
mandada para casa e punida por sua família.
Para as pouquíssimas mulheres que eram presas,
as condições eram horríveis: superlotação, espaços não arejados, escuros,
pesadas e afiadas algemas de metal que muitas vezes cortavam a pele. Ainda por
cima, sons de tortura ecoavam pelos corredores, e a realidade da violência
sexual teria sido um medo constante para as poucas mulheres encarceradas.
Roma tratava as prisões como locais de
detenção até o julgamento e a sentença, mas estas eram notoriamente brutais. Os
prisioneiros não tinham direitos nem proteção como os que existem hoje. Muitos
morriam antes mesmo de comparecer perante um juiz, alguns por suas próprias
mãos.
Mas Paulo fala sobre o encarceramento de Júnia
como uma medalha de honra, descrevendo a ela e a Andrônico como companheiros na prisão. Nesse texto, ele usa um termo
específico para prisioneiro: synaichmalōtos, que
significa tecnicamente “preso de guerra” ou “cativo de guerra”. E, como os
cristãos não estavam em guerra política contra Roma em sentido literal, isso é
uma metáfora. Paulo está dizendo que esses cristãos estão presos por causa do
evangelho — por causa de seu testemunho público sobre Jesus Cristo.
Roma não era o verdadeiro inimigo nesta guerra
— Paulo tende a voltar o foco para o pecado, a morte e Satanás, como os
arqui-inimigos do evangelho. Ele entendia essa forma de prisão como uma forma
de guerra espiritual. Mas por que exatamente Andrônico e Júnia estavam na
prisão, para começo de conversa? De quais crimes eles eram acusados?
Levando em conta que Paulo elogiou os dois
como heróis da fé, podemos presumir que não eram acusados de algo como assassinato
ou violência. A opção mais provável é que essa dupla de apóstolos tenha sido
colocada sob custódia por incitar alguma perturbação pública, enquanto pregava
o evangelho em algum espaço público. Minha mente evoca o incidente de Éfeso, em
Atos, no qual o ministério de Paulo provocou um tumulto. Um líder local,
Alexandre, acalmou a multidão, alertando-os sobre a intervenção romana (Atos
19.21-41).
Do mesmo modo, imagino que apóstolos como
Andrônico e Júnia iam de cidade em cidade pregando para pessoas, em ambientes
públicos e privados, realizando milagres, libertando cativos e enfrentando as
consequências de causar alvoroço por todo o mundo,
como diz Atos 17.6. Junto com esse casal, Paulo também chamou Aristarco e
Epafras de “companheiro[s] de prisão” (Colossenses 4.10; Filemom 23). O que
todos eles têm em comum é o distintivo ilustre do cativeiro por causa do
evangelho de Jesus Cristo.
Em suas famosas homilias bíblicas, João Crisóstomo defendia que as cartas que os apóstolos escreviam enquanto estavam presos são mais preciosas do que aquelas escritas quando estavam em liberdade. Ele escreve: “Ah! Essas cadeias abençoadas! Oh! Essas mãos abençoadas, adornadas por aquelas correntes!”. E continua dizendo que nenhum milagre de cura nas Escrituras se compara à glória dessas correntes.
Por que há tanta reverência pelos grilhões de
metal do cativeiro?
Primeiro, porque os crentes que são presos por
sua fé são forçados a pensar de forma mais profunda e clara sobre a vida e a
morte, e sobre a importância das coisas eternas. Contudo, ainda mais fundo nos
leva o texto de Filipenses 3.10, em que Paulo escreve: “Quero conhecer a
Cristo, ao poder da sua ressurreição e à participação em seus sofrimentos,
tornando-me como ele em sua morte”.
Os primeiros líderes cristão, como Júnia,
tiveram o distinto privilégio de viver essa comunhão de sofrimento em suas
prisões pelo evangelho. Aqueles que sofreram tais degradações, com Jesus e por
ele, provaram a força de sua fé, a verdade de sua convicção e a extensão de seu
amor por Cristo, que primeiro deu a vida por eles.
Para Paulo, não havia fruto maior do que uma
nova fé no evangelho e não havia marca maior de perseverança do que ser um cativo
em correntes pelo evangelho. Crisóstomo estava certo: essas correntes são
preciosas — não como relíquias sagradas, mas como prova de que estimaram e
pagaram o custo de obedecer à comissão de dar testemunho público do evangelho.
Nijay K. Gupta é professor de Novo Testamento
no Northern Seminary e autor de Tell Her
Story: How Women Led, Taught, and Ministered in the Early Church .