quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Pastor em quem eu devo votar? Lembranças quando a igreja evangélica divulgava o decálogo do voto evangélico



O que está havendo nessa eleição no Brasil é algo horrível e que certamente vai haver consequências. Ataques, intimidações, ameaças, exclusões. Isso em igrejas. O voto é secreto é individual, e é livre pela nossa Constituição. 

Está havendo nessa eleição o chamado "voto do silêncio" ou voto envergonhado". Porque as pessoas não podem nem mais manifestar e discutir no bom sentido, sua opção de voto. Não existe opção de voto para muitos, principalmente dentro das igrejas. 

Se declarar voto em quem não é o que acham ou apoiam, a pessoa é criticada, é atacada, é por incrível que pareça - punida. Geralmente quem faz isso são os mesmos que dizem para votar no seu candidato para evitar a perseguição contra a igreja. Ela já existe e pior - está ocorrendo dela. Se alguém quer votar na direita ou esquerda ele é livre como cidadão para fazer sua escolha. Mas se uma pessoa quer votar em outra opção que não a indicada pelo líder religioso ou pela igreja ela é livre para isso. E não deve ficar dizendo que a pessoa não é cristã, não é salva, punir a pessoa na igreja, tirando cargos ou até forçando a pessoa pedir para sair.

O decálogo do voto evangélico publicado em 1994 pela AEVB - Associação Evangélica Brasileira, foi o mais perfeito guia de orientação do voto entre evangélicos nesse país. Naquele tempo ainda havia essa liberdade de dizer que o voto do pastor não era o voto de Deus, era o voto opcional dele, assim como o de cada membro da igreja.

Nas eleições de 1994, mantido o quadro da polarização entre evangélicos e a instrumentalização da religião na campanha eleitoral, a Conferência da AEVB aprovou o Decálogo do Voto Ético Cristão. Reproduzo aqui dado as circunstâncias que estamos vivendo:

I - O voto é intransferível e inegociável. Com ele o cristão expressa sua consciência como cidadão. Por isso, o voto precisa refletir a compreensão que o cristão tem de seu País, Estado e Município;

II. O cristão não deve violar a sua consciência política. Ele não deve negar sua maneira de ver a realidade social, mesmo que um líder da igreja tente conduzir o voto da comunidade noutra direção;

III. Os pastores e líderes têm obrigação de orientar os fiéis sobre como votar com ética e com discernimento. No entanto, a bem de sua credibilidade, o pastor evitará transformar o processo de elucidação política num projeto de manipulação e indução político-partidária;

IV. Os líderes evangélicos devem ser lúcidos e democráticos. Portanto, melhor do que indicar em quem a comunidade deve votar é organizar debates multipartidários, nos quais, simultânea ou alternadamente, representantes das correntes partidárias possam ser ouvidos sem preconceitos;

 V. A diversidade social, econômica e ideológica que caracteriza a igreja evangélica no Brasil impõe que não sejam conduzidos processos de apoio a candidatos ou partidos dentro da igreja, sob pena de constranger os eleitores (o que é criminoso), e de dividir a comunidade;

VI. Nenhum cristão deve se sentir obrigado a votar em um candidato pelo simples fato de ele se confessar cristão evangélico. Antes disso, os evangélicos devem discernir se os candidatos ditos cristãos são pessoas lúcidas e comprometidos com as causas de justiça e da verdade. E mais: é fundamental que o candidato evangélico queira se eleger para propósitos maiores do que apenas defender os interesses imediatos de um grupo religioso ou de uma denominação evangélica. É óbvio que a igreja tem interesses que passam também pela dimensão político-institucional. Todavia, é mesquinho e pequeno demais pretender eleger alguém apenas para defender interesses restritos às causas temporais da igreja. Um político de fé evangélica tem que ser, sobretudo, um evangélico na política e não apenas um “despachante” de igrejas. Ao defender os direitos universais do homem, a democracia, o estado leigo, entre outras conquistas, o cristão estará defendendo a Igreja.

VII. Os fins não justificam os meios. Portanto, o eleitor cristão não deve jamais aceitar a desculpa de que um evangélico político votou de determinada maneira porque obteve a promessa de que, em assim fazendo, conseguiria alguns benefícios para a igreja, sejam rádios, concessões de TV, terrenos para templos, linhas de crédito bancário, propriedades, tratamento especial perante a lei ou outros “trocos”, ainda que menores. Conquanto todos assumamos que nos bastidores da política haja acordos e composições de interesse, não se pode, entretanto, admitir que tais “acertos” impliquem na prostituição da consciência cristã, mesmo que a “recompensa” seja, aparentemente, muito boa para a expansão da causa evangélica. Jesus Cristo não  não aceitou ganhar os “reinos deste mundo” por quaisquer meios, Ele preferiu o caminho da cruz;

VIII. Os votos para Presidente da República e para cargos majoritários devem, sobretudo, basear-se em programas de governo, e no conjunto das forças partidárias por detrás de tais candidaturas que, no Brasil, são, em extremo, determinantes; não em não em função de “boatos” do tipo: “O candidato tal é ateu”; ou: “O fulano vai fechar as igrejas”; ou: “O sicrano não vai dar nada para os evangélicos”; ou ainda: “O beltrano é bom porque dará muito para os evangélicos”. É bom saber que a Constituição do país não dá a quem quer que seja o poder de limitar a liberdade religiosa de qualquer grupo. Além disso, é válido observar que aqueles que espalham tais boatos, quase sempre, têm a intenção de induzir os votos dos eleitores assustados e impressionados, na direção de um candidato com o qual estejam comprometidos:

IX. Sempre que um eleitor evangélico estiver diante de um impasse do tipo: “o candidato evangélico é ótimo, mas seu partido não é o que eu gosto”, é compreensível que dê um “voto de confiança” a esse irmão na fé, desde que ele tenha as qualificações para o cargo. Entretanto, é de bom alvitre considerar que ninguém atua sozinho, por melhor que seja o irmão, em questão, ele dificilmente transcenderá a agremiação política de que é membro, ou as forças políticas que o apoiem;

X. Nenhum eleitor evangélico deve se sentir culpado por ter opinião política diferente da de seu pastor ou líder espiritual. O pastor deve ser obedecido em tudo aquilo que ensina sobre a Palavra de Deus, de acordo com ela. No entanto, no âmbito político-partidário, a opinião do pastor deve ser ouvida apenas como a palavra de um cidadão, e não como uma profecia divina.

Quando lembro que nessa época (1994) grande parte das igrejas evangélicas haviam se filiado a AEVB, a liderança da AD, batistas, metodistas, presbiterianos, e tantas outras denominações. Ainda que não seguissem ao pé da letra o decálogo para o voto ético como a gente sabe, mas pelo menos só de terem concordado com a divulgação dele nas igrejas já era um alento de liberdade, democracia e bom senso, infelizmente estamos vendo o contrário nos dias atuais. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Igreja Assembleia de Deus e a política - Jornal O Globo faz ampla reportagem sobre a AD

 Presente em todos os estados, denominação agregou políticos das mais diferentes ideologias e, com disputas internas, mantém canais abertos com Lula e Bolsonaro de olho em 2023

Por Bernardo Mello, Eduardo Gonçalves e Natália Portinari — Rio e Brasília

 

Salto evangélico: Assembleia de Deus, maior rede de igrejas do país, tem laços políticos de Eduardo Cunha e Feliciano a Marina Silva
Culto em uma das igrejas da Assembleia de Deus, em Manaus: mais de 43 mil templos espalhados pelo país Márcia Foletto

Enquanto a ex-ministra Marina Silva, na última segunda-feira, declarava apoio à candidatura do ex-presidente Lula (PT) e criticava o uso de mensagens religiosas contra o petista, o deputado federal Marco Feliciano (PL-SP) publicava o vídeo de um pastor pedindo voto no presidente Jair Bolsonaro (PL) na igreja e uma foto sua com a Bíblia.

  • Os dois são como água e óleo quando se trata de política, mas há algo a uni-los: a Assembleia de Deus, maior rede de igrejas evangélicas do país. Presente em todos os estados da federação e com 43,5 mil registros em vigor na Receita Federal, segundo dados levantados pela organização Brasil.io, a denominação tem mais templos no país do que a quantidade de agências dos Correios (11 mil) ou lotéricas (13 mil). A cada quatro igrejas evangélicas abertas na última década, uma carrega “Assembleia de Deus” no nome.

— Hoje se diz que Assembleia de Deus é que nem Coca-Cola, porque tem em todo lugar — afirma o ex-deputado e pastor Everaldo Pereira (PSC), responsável por batizar, em 2016, Bolsonaro no Rio Jordão, em Israel.— Na década de 1980, as lideranças diziam na Constituinte que a igreja também tinha que estar no Congresso. Eram pastores levando o púlpito para o Congresso — completa a deputada federal Benedita da Silva (PT), aliada de Lula, sobre a eleição de deputados das Assembleias de Deus por diferentes legendas, da direita à esquerda (foram 110 assembleianos compondo a bancada evangélica nos últimos 20 anos, por siglas como PL, PSDB, MDB e PT).

Crescimento da Assembleia de Deus — Foto: Arte / O Globo

Crescimento da Assembleia de Deus — Foto: Arte / O Globo

A alta capilaridade da Assembleia de Deus e a capacidade de agregar políticos das mais diversas ideologias se justificam por sua origem e a forma como se organizou ao longo dos anos. Fundada por dois pastores suecos, Daniel Berg e Gunnar Vingren, que chegaram no início do século XX a Belém (PA), vindos dos Estados Unidos, a igreja se diferenciou dos “protestantes históricos” pela doutrina — centrada em manifestações do Espírito Santo através de curas divinas e do “falar em línguas estranhas” como em um transe— e pela ênfase e maleabilidade na expansão. Diferentes pesquisadores analisam as Assembleias de Deus não como organismo singular, mas como uma “marca de respeitabilidade entre igrejas”, como define o pastor Luciano Luna, hoje assessor de partidos políticos. Em lugar de um líder único, como na Igreja Universal, o funcionamento ocorre como um sistema de franquias.

— Diferente de outras igrejas, não há uma cúpula decidindo estrategicamente onde vai se abrir cada igreja. Por isso é possível encontrar uma Assembleia do lado da outra, na mesma rua — explica Gedeon Alencar, doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP.

Ramificações da Assembleia de Deus — Foto: Arte / O Globo

Ramificações da Assembleia de Deus — Foto: Arte / O Globo

A miríade de igrejas com o nome “Assembleia de Deus”, de múltiplas faces, se ancora na Convenção Geral das Assembleias de Deus (CGADB), uma espécie de “guarda-chuva” que reúne cerca de 60 convenções estaduais, cada qual com dezenas de ministérios, que contam com até centenas de templos. A CGADB é comandada pela família do pastor José Wellington, também responsável pelo Ministério do Belém, conhecido como Belenzinho, sediado no bairro de mesmo nome em São Paulo, e que tem 896 templos distribuídos em dez estados.


A ascensão de José Wellington ocorreu junto à expulsão do Ministério de Madureira da CGADB, em 1989. Fundada na década de 1930, Madureira logo passou a expandir seu ministério de forma autônoma e entrar em atrito com os assembleianos “de missão”, como chamavam a cúpula original de Belém. Hoje é liderada pelos bispos Manoel Ferreira e seus filhos Abner e Samuel, e tem 1.249 templos. Ferreira chegou a presidir a CGADB na década de 1980, e foi afastado após perder o comando para o grupo de José Wellington.

Mais dois ramos relevantes também romperam com a CGADB. O pastor Silas Malafaia deixou a convenção em 2010, denunciando irregularidades em gastos na gestão de José Wellington, e seguiu de maneira independente com a sua Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Sete anos depois, o pastor Samuel Câmara, líder da chamada “igreja-mãe” da Assembleia de Deus em Belém (PA), também rompeu com a CGADB, após perder seguidas eleições ao comando da entidade para José Wellington e seu filho, José Wellington Costa Jr., em meio a acusações de fraude eleitoral.

As brigas por poder na Assembleia de Deus ficaram evidentes na guerra pelo comando da bancada evangélica este ano, entre Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), aliado de Malafaia, e Cezinha de Madureira (PSD-SP). Sem abrir mão da presidência, Cezinha e Sóstenes acertaram uma alternância, mas Madureira ensaiou não transmiti-la. No fim, Sóstenes herdou a bancada em meio a um embate que ameaçou implodir a unidade forjada em torno de Bolsonaro. Hoje, Cezinha diz que o apoio ao presidente alcança até a CGADB, cujo formato abre maior autonomia às igrejas.

— O bispo Samuel Ferreira está andando pelo país inteiro em campanha por Bolsonaro. Na outra Assembleia de Deus, eles não conseguem ter um comando geral, mas mesmo assim estão também fazendo campanha para Bolsonaro — afirma.


Sinais múltiplos

Desde que Bolsonaro assumiu, houve aproximação das maiores lideranças com o seu governo — a aliança com o pastor Silas Malafaia é o maior símbolo da sinergia. A Assembleia de Deus já dava sinais de que ficaria mais associada ao antipetismo quando políticos como o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, hoje no PTB, migraram para o Ministério de Madureira durante seus mandatos. Além disso, a presidência do deputado federal Marco Feliciano, em 2013, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, sob protestos da esquerda, é considerada crucial para dar “identidade ao movimento” evangélico.

— Pela primeira vez difundimos de maneira clara e em escala nacional nossas peculiaridades. Muita gente se descobriu evangélico ali — diz Feliciano, que vê uma atuação legislativa coesa das Assembleias de Deus, mesmo com as disputas — Hoje não passam leis que aviltem nossas tradições.

Políticos na Assembleia de Deus — Foto: Arte / O Globo

Políticos na Assembleia de Deus — Foto: Arte / O Globo

Mas os maiores ramos da Assembleia de Deus já se dividiram em disputas presidenciais. Em 2010, enquanto o pastor José Wellington apoiou o tucano José Serra, Madureira fechou com a petista Dilma Rousseff. A capacidade de diferentes alianças se reproduz até dentro dos ramos: no ano passado, Manoel Ferreira, líder de Madureira, reuniu-se com Lula no Rio; seu filho Abner, presente em cultos com Bolsonaro neste ano, abriu o templo-sede para uma reunião de Marcelo Freixo (PSB), candidato ao governo do Rio. 


O cientista político Vinicius Valle, que pesquisa a atuação política da igreja, observa que os diferentes ramos, embora tenham modos distintos de articular candidaturas ao Legislativo, mantêm um padrão “amigável” com todos os presidentes, o que envolve canais abertos com a esquerda em uma eventual transição de poder em 2023.


Fonte: https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2022/noticia/2022/09/salto-evangelico-assembleia-de-deus-maior-rede-de-igrejas-do-pais-tem-lacos-politicos-de-eduardo-cunha-e-feliciano-a-marina-silva.ghtml