sábado, 2 de agosto de 2008

INTIMIDADE E INTEGRIDADE

"Sede meus imitadores, como eu sou de Cristo". I Cor. 11:3. A palavra da moda hoje é, intimidade. Todos querem ser íntimos de Deus, do cônjuge, da namorada ou do amigo. Os programas de televisão e de rádio de maior audiência são aqueles que exploram a intimidade dos outros. As revistas de maior vendagem são aquelas que fofocam e comentam a intimidade de pessoas famosas. É comum ouvir nas ruas comentários sobre a vida íntima das celebridades, sobre suas casas, plásticas e relacionamentos, como se fossem velhas conhecidas. O sucesso do Big Brother está exatamente em expor a intimidade dos outros. Casais expõem-se na televisão. Todos querem mostrar o que são e o que pensam. Querem mostrar o corpo e a alma. Vivemos a era de Narciso.
Nas igrejas não é diferente. Boa parte das músicas que cantamos buscam promover uma adoração mais individual. É preciso “sentir” a presença de Deus, repetir estrofes até que provoquem algum tipo de êxtase. Nas orações predominam os pronomes da primeira pessoa: meu, para mim. Certa vez ouvi alguém dizer que quando louva a Deus é como se estivesse “dançando com o rosto coladinho em Jesus”.
Tenho me preocupado com o modelo de espiritualidade intimista que vem sendo proposto, que, de certa forma, é uma versão religiosa do individualismo narcisista da cultura pós-moderna, uma versão religiosa do “ficar”. Ela só existe naquele momento, com aquelas sensações. É um modelo de intimidade e espiritualidade que não contempla a riqueza dinâmica da vida da fé. Seguir a Cristo no caminho do discipulado nos envolve numa espiritualidade cuja intimidade se dá num processo dinâmico de relacionamento, em que a confissão “Aba-Pai” acontece ao lado da confissão “Kyrios-Cristo”. Ambas dão o equilíbrio necessário a uma espiritualidade que é integral e pessoal, pública e privada, missionária e contemplativa.
A intimidade que Cristo nos propõe acontece num caminho e envolve todas as estações da vida. Ele nos chama para orar, mas também para lavar os pés uns dos outros. Ele nos chama para viver numa comunhão amorosa e segura com o Pai, mas também para confrontar os poderes que aprisionam e oprimem o ser humano. Ele nos chama para o silêncio e solitude, mas também para a proclamação profética e libertadora. É uma espiritualidade que precisa estar presente na economia e na política, na igreja e no quarto. O intimismo intoxica, a intimidade liberta. O intimismo é narcisista e exclusivista, a intimidade é pessoal e comunitária. A imitação de Cristo é o caminho mais seguro para uma intimidade libertadora.
Talvez a maior crise do cristianismo ocidental contemporâneo seja a crise da integridade, a incapacidade de integrar aquilo que cremos com a realidade e a forma como vivemos. Parece que existe entre nós uma falsa premissa de que, se temos uma boa música, temos uma boa adoração; se temos uma boa doutrina, temos uma boa espiritualidade; se temos um bom programa eclesiástico, temos uma missão, e por aí vai. Porém uma coisa não implica necessariamente a outra.
Essa presunção tem nos levado a criar uma brutal distância entre o que afirmamos crer e a integração de nossas crenças à realidade; conscientemente ou não, temos dado à mera aparência uma forma de realidade. Muitos pensam que ser cristão é ter a doutrina certa, cantar as boas e animadas músicas nos cultos, de preferência com os olhos fechados e as mãos levantadas, e ter algum grau de compromisso e envolvimento com as atividades da igreja. Embora nada disso seja necessariamente errado, o chamado de Cristo é para que sejamos seus discípulos, seus seguidores, ou, como o apóstolo Paulo prefere, seus imitadores. E não é isso que acontece entre nós. Somos crentes, cremos nas doutrinas certas, cantamos nos cultos, participamos dos programas da igreja, mas não somos imitadores de Cristo. É raro encontrar entre nós verdadeiros discípulos de Cristo, que seguem seu caminho e são comprometidos em fazer outros seguidores de Cristo.
Se cremos que a Bíblia é a Palavra de Deus, deveríamos deixar que ela, além de revelar as doutrinas certas, molde nossa cosmovisão, a forma como vemos e interpretamos a realidade. Mas não é isso que acontece. Não tem sido a Bíblia, mas a mídia e a cultura em geral que têm moldado nossa leitura da realidade. Se cremos que Jesus é o Filho de Deus encarnado, nossa humanidade deveria refletir a verdadeira humanidade de Cristo com sua compaixão, misericórdia, bondade e amor. Mas também não é isso que vemos entre nós. Se somos verdadeiros adoradores, deveríamos, além de cantar inspirados no domingo, também viver para agradar a Cristo e em obediência a ele durante toda a semana. Mas nem sempre é isso que acontece. Se cremos na ressurreição e na vida eterna, certamente seríamos menos materialistas e consumistas, menos apegados às coisas deste mundo, ansiando mais o reino de Deus do que o sucesso e a estabilidade neste mundo. Mas não é isso que vemos. Existe uma forte discrepância entre o que afirmamos crer e a forma como vivemos; não há uma integridade entre o conteúdo e a forma, entre a fé e a realidade.
Precisamos voltar a considerar o chamado de Cristo para segui-lo. É claro que crer nas doutrinas certas é fundamental, mas é igualmente fundamental que elas sejam integradas à realidade de nossas vidas e igrejas. Certa vez Jesus advertiu seus discípulos dizendo: “Errais, não conhecendo as Escrituras, nem o poder de Deus”. Minha impressão é que alguns conhecem as Escrituras, mas não conhecem o poder de Deus; e outros conhecem o poder de Deus, mas não conhecem as Escrituras. Conhecer as Escrituras e o poder de Deus é integrar as verdades bíblicas e a vida de forma que o testemunho de Cristo seja poderosamente afirmado nos atos de misericórdia, compaixão, serviço e proclamação.
Precisamos buscar uma espiritualidade que encontre nos evangelhos, na pessoa de Cristo e na presença do reino de Deus sua forma e seu conteúdo. O convite corajoso e sincero de Paulo — “Sede meus imitadores como eu sou de Cristo” — é um testemunho poderoso de uma vida e ministério integrados com a vida e o ministério de Cristo. Para Paulo, precisamos da sã doutrina para nos tornar sábios para a salvação, e não para simplesmente ter o discurso correto. Nosso chamado é para sermos seguidores, imitadores de Cristo, e não apenas ter convicções corretas sobre ele. O descrédito que o cristianismo vem sofrendo nos últimos anos tem a ver com a falta de integridade no meio cristão, com a necessidade de uma espiritualidade evangélica, encarnada, vivida no poder do Espírito Santo, que revele nas palavras e nos atos o testemunho de Cristo.

domingo, 27 de julho de 2008

SENHOR, AJUDA A MINHA FÉ

A Mensagem que eu quero compartilhar hoje está no livro de Marços 9:14-29. Uma das respostas que melhor define as tensões da vida cristã é a daquele pai cujo filho era possuído por um espírito maligno, que o impedia de falar, atirava-o ao chão e o oprimia a ponto de levá-lo a ranger os dentes, espumar a boca e enrijecer todo o corpo. O episódio está narrado no Novo Testamento. O pai havia solicitado aos discípulos de Jesus, que expulsassem o espírito do filho, mas eles não conseguiram. O Mestre, ouvindo o relato deste pai aflito, pede para que tragam o menino até ele. Quando chegou perto de Jesus, o espírito maligno provocou uma convulsão no garoto e o jogou ao chão. O pai, vendo aquela cena, completou seu relato dizendo que aquilo acontecia desde a infância do filho, e que muitas vezes este espírito tentou inclusive matá-lo.
Diante do quadro dramático, o pai fez seu apelo a Cristo: “Se podes fazer alguma coisa, tem compaixão de nós e ajuda-nos”. “Se podes?”, reagiu Jesus à pergunta, fazendo uma séria afirmação: “Tudo é possível àquele que crê”. Diante da afirmação de Jesus, o pai do garoto dá então, a seguinte resposta: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade”.
Esta resposta corajosa daquele homem revela uma tensão constante da experiência da fé. Para muitos, a vida cristã funciona com a prescisão da lógica contratual – basta que cada parte cumpra com suas obrigações que tudo sairá da forma esperada. Uma vez que Deus sempre cumpre com seus compromissos, resta-nos comprir com a nossa obrigação. Pensamos que, se vamos à igreja, contribuímos financeiramente para a obra, obedecemos aos mandamentos e fazemos tudo o os nossos mestres e conselheiros orientam, certamente a vida nos irá bem, sem tropeços ou surpresas. Porém, o fato é que nem sempre tudo acontece com a precisão da lógica. A vida é complexa, nossos desejos são muitas vezes confusos e obscuros. Alimentamo-nos de falsos ideais e facilmente nos entregamos às ilusões. O pecado é uma realidade dolorosa que corrompe os sonhos mais sinceros e puros.
Nossa cultura racional, funcional e pragmática não admite conflitos e angústias. Basta uma boa olhada nas livrarias que veremos uma grande quantidade de livros com receitas e fórmulas para casamentos felizes, filhos contentes e educados, ministérios eficazes e os infalíveis passos para o sucesso pessoal. A impressão é de que só tem problemas quem quer, ou quem ainda não adquiriu estes maravilhosos manuais que reduzem a vida a um esquema simplista e perverso. Aquele que não possui a fé mágica e a senha secreta para solucionar, num piscar de olhos, todos os dramas, corre o risco de sentir-se desqualificado para a vida espiritual.
A vida da fé envolve tensões e angústias. Ao contrário do que muitos tentam afirmar, insistindo numa fé que exorciza as crises humanas, dramas como o daquele pai do garoto possesso ou como o de Tomé, que duvidou da ressurreição, são mais freqüentes do que imaginamos. Miguel de Unamuno disse: “Aqueles que acreditam que crêem em Deus, mas sem paixão em seu coração, sem angústia mental, sem incertezas, sem dúvidas, e às vezes até mesmo sem desespero, crêem apenas na idéia de Deus, mas não no próprio Deus”.
Cremos e o ato de crermos envolve a capacidade de respondermos afirmativamente àquilo que nos é revelado nas Escrituras. Contudo, diante das complexidades, crises e conflitos da vida, respondemos como o pai do jovem endemoninhado: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade”. É preciso aceitar a incredulidade, o medo e as aflições como partes integrantes do processo de amadurecimento da fé. Jesus não nos deu fórmulas prontas, receitas infalíveis. Ele nos mostra o caminho e a verdade, nos ensina a andar por ele, nos oferece ajuda quando o fardo é pesado demais e deixa o exemplo para seguirmos seus passos. C.S. Lewis dizia que fé tem mais a ver com nossas emoções do que com nossa razão. Muitas vezes, cremos, mas temos medo; cremos, mas não estamos seguros quanto ao que desejamos. Cremos, mas achamos que não merecemos tamanha graça; cremos, mas ainda somos incrédulos. A distância entre nossas convicções e nossas emoções é o espaço onde a crise e as tensões da fé acontecem.
Jesus acolhe a incredulidade daquele pai aflito. Ajuda Tomé a superar sua dúvida. O que permitiu tanto ao pai, quanto a Tomé, crescer e superar as fronteiras da incredulidade, foi a capacidade honesta e sincera de reconhecer limitações e dificuldades. Eles não as esconderam sob o manto da falsa piedade, das afirmações vazias e desconectadas da vida. Para superas nossas próprias fronteiras e crescer em direção a Cristo, numa fé madura, bíblica e profundamente integrada à nossa humanidade, será preciso reconhecer nossas crises e aflições, pois são elas que nos tornam mais dependentes de Deus, que provacam as inquietações da alma, que nos empurram para o Senhor. E despertam em nós, fome e sede de Deus, porque nos fazem ver que ele, só ele, é capaz de satisfazer os anseios mais profundos e sinceros da alma.