segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Existe “pentecostalismo reformado”?


A Reforma Protestante, logo em seu início, se dividiu em dois grupos: a Reforma Magistral, com o apoio do Estado, e a Reforma Radical, sem o apoio e sob a perseguição do Estado. No primeiro grupo, houve três vertentes principais: a evangélica, a reformada e a anglicana.  O pentecostalismo, como um fenômeno do século XX, não é, obviamente, derivação direta nem da teologia dos evangélicos (luteranos), nem da teologia reformada (calvinistas), nem da teologia anglicana e nem da Reforma Radical, embora algumas ênfases sejam parecidas, especialmente com os espiritualistas. O pentecostalismo moderno é um movimento tardio e nasce no seio do Movimento da Santidade, embora, logo em seu início, tenha ganhado autonomia em relação à teologia wesleyana. Mas, cabe ressaltar, o pentecostalismo não era a proposta de uma nova roupagem teológica, mas sim, da vivência carismática no seio da igreja para o impulso missiológico.

Como uma teologia globalizante, o pentecostalismo permeou várias tradições cristãs. O Movimento Carismático, ou seja, a pentecostalização das igrejas históricas, já é um fenômeno amplamente conhecido, estudado e observado desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Inclusive, a força mais dinâmica da Igreja Católica e da Igreja Anglicana, por exemplo, são carismáticas. Hoje, a “comunidade pentecostal”, ou seja, pentecostais clássicos, carismáticos e neopentecostais representam mais de 700 milhões de cristãos de todo o mundo. Diante de um fenômeno crescente tão espantoso, o pentecostalismo deixou em parte de ser objeto de rejeição para ser uma marca desejada.

“Pentecostal Reformado”

Hoje há um fenômeno novo no mundo teológico. Muitos jovens que, outrora conheceram a fé cristã em alguma igreja pentecostal, agora abraçam a teologia reformada. Obviamente, não há nada ilegítimo nisso. Normalmente, nesse processo, esses jovens compram todos os aspectos da teologia reformada de matriz presbiteriana (soteriologia calvinista, aliancismo, amilenismo, princípio regulador do culto etc.), mas ainda se identificam como pentecostais. Ora, isso é possível? Em princípio, a resposta é afirmativa. O pentecostalismo é, acima de tudo, uma pneumatologia e, sendo assim, é de fácil adaptação com outras matrizes cristãs. O grande teólogo pentecostal William W. Menzies escreveu que não há nada essencialmente novo na teologia pentecostal em relação à teologia clássica, mas, como movimento, deu a devida ênfase a um aspecto que andava esquecido na história da cristandade[1].

Como cristã, a teologia pentecostal tem como motivo temático central a pessoa de Jesus Cristo, portanto, é uma fé cristocêntrica. Ao mesmo tempo, o seu motivo orientador central é a pneumatologia. O teólogo assembleiano Amos Yong lembra: “O batimento cardíaco da espiritualidade pentecostal é a experiência dinâmica no Espírito Santo”[2]. Na teologia pentecostal, é Cristo quem batiza no Espírito Santo. Cristo também cura e virá iminentemente. A dimensão pneumatológica do pentecostalismo põe Cristo no centro numa expectativa escatológica forte – que é mais um elemento energizador da evangelização. A teologia pentecostal clássica ainda afirma que é o Espírito Santo quem batiza o convertido no Corpo de Cristo, selando-o numa nova aliança com Jesus no momento da conversão. A dimensão soteriológica do papel do Espírito, tão enfatizada pelo apóstolo Paulo, não é de maneira alguma despreza pelos pentecostais. São abundantes, por exemplo, obras de teólogos pentecostais sobre o fruto do Espírito. Essencialmente, o pentecostalismo ajudou a despertar a igreja ocidental a olhar para a pneumatologia como essencial, logo porque se trata de uma pessoa da Santíssima Trindade, mas jamais perdeu a dimensão cristológica da fé protestante. 

Agora, sobre a qualidade doutrinária do “pentecostalismo” reformado, observo cada vez que os “pentecostais reformados” são, na verdade, apenas reformados continuístas, ou seja, acreditam que existe a possibilidade de exercer dons espirituais hoje, mas não veem distinção entre o Batismo no Espírito e a conversão. Alguns são até carismáticos, pois defendem alguma “experiência do Espírito”, mas jamais poderiam se intitular como pentecostais, no sentido clássico do termo, pois negam a natureza do Batismo no Espírito Santo como um dom de capacitação evangelística que é dado ao crente; dom esse, vale lembrar, que não se confunde com a conversão.

Em sua maioria, não estou generalizando, eles entendem bastante de teologia reformada, mas pouco de teologia pentecostal. Já leram inúmeros livros de teólogos reformados, mas desconhecem o universo literário do pentecostalismo. É provável que sejam mais familiarizados com os livros do John MacArthur Jr. do que de Stanley M. Horton, por exemplo. Eles se intitulam pentecostais não porque são leitores e produtores de teologia do pentecostalismo, mas simplesmente porque estão ou já foram de alguma igreja pentecostal. Alguns dizem que são pentecostais só porque a liturgia de suas igrejas é mais, digamos, animada, do que em relação a um tradicional culto puritano. O pentecostalismo deles se resume a uma vivência litúrgica, mas teologicamente são totalmente fechados no pacote de Westminster.

Sem a crença do Batismo no Espírito, seja ele evidenciado com o sinal da glossalalia ou não (logo porque não há consenso entre os pentecostais nesse aspecto), não é possível alguém afirmar que alguém é pentecostal. O dom do Batismo, como capacitador evangelístico, é essencial para a crença pentecostal. O pentecostalismo é uma pneumatologia missiológica. É uma teologia que vai além da eclesiologia dos carismas, embora seja esse o segundo ponto mais importante de sua modesta estrutura.  O continuísmo, repito, é parte essencial do pentecostalismo, mas o pentecostalismo não se resume ao continuísmo. O pentecostalismo não está voltado apenas para a capacitação espiritual dos dons que visam a edificação da igreja no contexto litúrgico, mas, acima de tudo, busca o revestimento de poder para sair às ruas e vielas deste mundo numa proclamação evangelística com autoridade, coragem sobrenatural e milagres. 

É observável que o pentecostal reformado, como boa parte dos teólogos da tradição reformada, tende a ler os escritos de Lucas à luz das epístolas de Paulo. É necessário cuidado com a “paulinização” do Novo Testamento. Embora a importância de Paulo seja incalculável, ele não é o único autor-teólogo do Novo Testamento. Uma investigação exegética séria, por exemplo, tentará entender os pontos em comum e as ênfases diferenciadas das teologias neotestamentárias, como a paulina, a lucana, a maetana, a joanina etc. A Bíblia, embora seja uma unidade inspirada pelo Santo Espírito, não suprimiu as perspectivas de cada autor.  Se Deus quisesse uma única perspectiva sobre determinado assunto, certamente a Bíblia seria dada pronta, como o Alcorão no Islã, ou então teria um único autor humano. A Sagrada Escritura é uma unidade orgânica, como afirmavam os pais da Igreja. Um exemplo clássico de como a teologia reformada sobrepõe Paulo a Lucas é a forma como entendem “cheios do Espírito” em Atos 2 como paralelo a ser “cheio do Espírito” em Efésios 5[3]. É condição sine qua non que o teólogo que se diz pentecostal seja alguém ciente da importância da pneumatologia lucana, algo que exegetas do passado como Hermann Gunkel, Eduard Schweizer, Howard M. Ervin e I. Howard Marshall  já tinham percebido. 

Outro ponto importante é que se a teologia reformada for entendida como uma espécie de teologia pronta, o que é uma mistura de ingenuidade com arrogância, qualquer pentecostalização, por mínima que seja, será uma deturpação da própria teologia reformada. Não são poucos reformados puristas que veem com ojeriza qualquer um que se intitule como “reformado pentecostal”. Creio que quem assim pensa está equivocado. O equívoco não é nem tanto pelo sectarismo infantil, mas sim porque esses puristas olham o pentecostalismo como uma cosmovisão concorrente. O pentecostalismo não se pretende como uma teologia que engloba todos os grandes temas da fé protestante, portanto, jamais será um sistema complexo adversário da teologia reformada. O pentecostalismo tem uma ambição bem mais modesta. Da mesma forma, rejeito a ideia que sejam sistemas incompatíveis, defendida por alguns pentecostais, pelos motivos já apontados. Embora acredite que seja possível alguém ser pentecostal e reformado, na prática, conheço pouquíssimos irmãos que são pneumatologicamente pentecostais e reformados no restante (soteriologia, escatologia, etc.). 

Exemplo de diferença no entendimento da mesma expressão

Observe que a Renovação Católica Carismática (RCC) não recebe o nome de Renovação Católica Pentecostal, isso porque conforme o pentecostalismo permeou outras tradições, essas tradições também adaptaram crenças pentecostais primitivas – como a do Batismo no Espírito Santo. Na RCC, o batismo no Espírito Santo, diferente dos pentecostais clássicos, não é entendido – puro e simplesmente – como um revestimento de poder para testemunho evangelístico, mas como uma efusão recebida mediante o sacramento que dá ao cristão a plenitude do Espírito (santificação, dons espirituais e mais intimidade com Cristo). No pentecostalismo clássico, o Batismo no Espírito Santo difere da plenitude do Espírito. O Batismo no Espírito Santo e os dons espirituais fazem parte da plenitude do Espírito, mas a plenitude do Espírito não se resume ao Batismo ou aos demais dons. A plenitude do Espírito engloba, especialmente, o fruto do Espírito, a santificação e a maturidade. O Batismo no Espírito Santo não é santificação, como lembra o teólogo pentecostal Antonio Gilberto[4], e nem maturidade cristã, como escreveu William e Robert Menzies[5]. Outro grande teólogo pentecostal, como Donald Gee, chegou a afirmar sobre o Batismo no Espírito Santo: “É inútil pensar que qualquer ‘bênção’ ou ‘experiência’ possa substituir um ‘andar’ contínuo no Espírito – por mais útil que tal bênção possa muitas vezes ser”[6]. Veja que, embora os católicos carismáticos e os pentecostais clássicos usem a nomenclatura “recebi o Batismo no Espírito Santo”, eles estão afirmando experiências diferentes.

Dessa forma, a exemplo dos católicos, os reformados continuístas deveriam buscar uma nomenclatura mais adequada para o conjunto de crenças que defendem. Assim, evitariam uma confusão com outros grupos dentro da “comunidade pentecostal”. O esclarecimento em conceito não visa, pelo menos no meu caso, o acirramento de disputas, mas a valorização da didática e o aprendizado honesto. Como em qualquer casamento, a união saudável é pautada no entendimento, respeito e acolhimento das diferenças, e não na supressão dos detalhes divergentes.  

Referências Bibliográficas:

[1] MENZIES, William. The Methodology of Pentecostal Theology: An Essay on Hermeneutics. Em: ELBERT, Paul. Essays on Apostolic Themes. 1 ed. Eugene: Wipf & Stock Publishers, 1985. p 1.

[2] YONG, Amos. The Spirit Poured Out on All Flesh. 1 ed. Grand Rapids: Baker Academic, 2005. p 13.

[3] Exemplo dessa misturada pode ser lida no livro: NICODEMUS, Augustus. Cheios do Espírito. 1 ed. São Paulo: Editora Vida, 2007. pp 36-41. Sem nenhuma metodologia clara, Nicodemos diz que Atos  2.37-41 é normativo, mas 2.1-4 não o é. A escolha do que é normativo ou meramente histórico se baseia na mera arbitrariedade do autor.

[4] GILBERTO, Antonio. Verdades Pentecostais. 1 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2006. p 60.

[5] Leia o capítulo 15 no livro No Poder do Espírito: Fundamentos da Experiência Pentecostal (Editora Vida).

[6] GEE, Donald. Como Receber o Batismo no Espírito Santo. 6 ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2000. p 61. É sempre útil lembrar que o título original da obra é Pentecost. 

Fonte:  https://teologiapentecostal.blog/

Meu comentário: Como a postagem já é grande, vou deixar para o próximo post, para deixar meu posicionamento sobre o assunto, já adiantando que ele será em outra linha de pensamento. 


2 comentários:

  1. Que post interessante Pastor! Não encontrei seu posicionamento! Parabéns pelo blog!

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    1. Paulinha, que prazer ter você por aqui! Meu posicionamento está sendo colocado nas postagens que eu estou postando como a atual sobre o batismo com Espírito Santo.

      Abraço.

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