Li e reli “Alma Sobrevivente” do Philip Yancey (Mundo Cristão, 2004). No livro, Yancey confessa seu quase abandono da igreja evangélica. O fundamentalismo, racismo e obscurantismo de sua pequena comunidade no sul dos Estados Unidos quase o asfixiaram na fé. Identifiquei-me com o autor em seu desencanto.
Por outras razões, já pensei em me auto-exilar do mundo evangélico; aliás, já cogitei, até cometer um “suicídio institucional”. Só não o fiz porque minha biografia, como a dele, também foi marcada por gente, histórias comovedoras e testemunhos formidáveis que me preservam a fé cristã. Eu também posso listar pessoas e eventos que não me deixam desistir. Recordo-me de dois acontecimentos significativos.
Há alguns anos, fui convidado para pregar em uma igreja evangélica carismática no Canadá. Não me assustei com o clima quente dos cultos pentecostais canadenses. Vindo da Assembléia de Deus brasileira, já me acostumara com reuniões emotivas e sempre eufóricas. Falei em três ocasiões diferentes. No domingo, depois que findou o culto, fomos convidados para uma “reunião de grupo caseiro”. Essa igreja participava de um movimento que procurava identificar os interesses dos membros para estabelecer “redes ministeriais” que serviam para formar vínculos entre as pessoas e para evangelização. Na casa que fomos visitar, todos tinham o “dom de colecionar miniaturas de trens”.
O sistema funcionava da seguinte maneira: oito ou nove casais que se interessavam em colecionar miniaturas de trens, se reuniam semanalmente e, enquanto trocavam idéias, consertavam, montavam e faziam os trens passearem, desenvolviam boa fraternidade. Os encontros serviam também de “isca” para atrair pessoas refratárias à fé. Não-cristãos que se interessassem por trenzinhos poderiam ser convidados para essas reuniões e ser evangelizados.
Como éramos de um país pobre e nunca havíamos participado de uma fraternidade cristã que usava trens em miniatura para gerar interesse pelos conteúdos do evangelho, recebemos uma verdadeira aula sobre o funcionamento do grupo e sua lógica ministerial. Cada um queria mostrar sua coleção de vagões, a montagem dos trilhos e as mini-estações com minúsculos passageiros. Espantei-me com a quantidade de dinheiro gasto com o passatempo dos irmãos. Uma autêntica réplica de uma locomotiva a vapor do início do século 20, se não me engano, havia custado 8 mil dólares.
Fui dormir angustiado naquela noite. Meu coração não me deixava dormir. Eu me perguntava: “Onde o cristianismo ocidental se perdeu?”.
Cinco dias depois, cheguei aos Estados Unidos, no estado de Virginia, e preguei numa igreja também carismática. Quando terminou o culto do sábado, um rapaz me convidou para jantar na casa do reitor da Universidade Estadual. Segundo ele, o reitor já visitara o Brasil e se sentiria muito feliz em me conhecer.
A família freqüentava uma igreja presbiteriana bem formal em sua liturgia e bem liberal em sua teologia. Bastaram alguns minutos e entendi a ligação do casal com o Brasil.
Eles tinham uma família de treze filhos, todos adotivos e com alguma deficiência física. O casal decidiu que adotaria crianças de vários países do mundo em situação de abandono, ou por carregarem alguma doença genética ou por sofrerem algum estigma cultural. Assim, tinham uma filha coreana que era cega, surda e muda, um menino africano que nascera sem as pernas, dois ou três com síndrome de Down, e outros com diferentes anomalias genéticas. Os brasileiros eram três: uma menina cega, vinda do sertão da Paraíba e dois meninos infratores, que viviam abandonados nas unidades da Febem de São Paulo e Rio de Janeiro.
Sentamos à mesa e agradecemos a Deus pelo alimento; enquanto comíamos, eu tomava consciência que jamais seria o mesmo. A glória de Deus encheu aquele lar com uma leveza que, em alguns momentos, precisei me beliscar para perceber que não sonhava. Tentei conter minhas lágrimas que escaparam duas ou três vezes e que limpei com o guardanapo de papel. Não resisti e narrei para eles a diferença abismal entre aquela noite e a dos trenzinhos, que tanto me chocaram. O reitor, educado e discretíssimo, não quis alongar minha observação, apenas comentou: “É uma pena, lá eles nunca ouvirão a voz doce de uma criança, dizendo, ‘obrigado, papai’”!.
Despedi-me da família e minha jornada espiritual deu uma guinada. Primeiro, percebi como é fácil adequar o evangelho de Jesus Cristo à mentalidade consumista de uma classe média burguesa, e ainda justificar essa manipulação, com um rótulo espiritual. Depois, roguei para que minha vocação, como pastor pentecostal, não contribuísse para fomentar uma espiritualidade desencarnada. Eu já participara de muitos ambientes em que o clima emocional não se transformava em atos de justiça.
Mas acima de tudo, naquela noite, perdi alguns dos meus preconceitos. Eu fora treinado com uma formação teológica que evitava contato com os liberais. Gente que não lesse a Bíblia e não soubesse repetir o nosso catecismo, deveria ser mantida à distância. De repente, eu estava sentado à mesa de um homem que cultuava a Deus em uma igreja que eu considerava fria. Contudo, seus valores cristãos eram muito mais nobres que os meus. A partir daquele jantar, abri-me para pessoas que vivem fora dos contornos de meu gueto religioso. Aprendi que muitas vezes, outros também encarnam os valores do Reino de Deus até com mais exuberância do que os que se auto-intitulam defensores da sã doutrina.
Acredito que foi Santo Agostinho quem disse: “Deus já possui ovelhas em seu aprisco que a igreja ainda não alcançou”. Hoje celebro os gestos nobres de instituições como Médicos Sem Fronteiras, reverencio o altruísmo de freiras que cuidam de orfanatos e respeito a disposição de padres que se entregam a leprosos. Louvo a Deus por cristãos que, mesmo não participando de nenhuma instituição, comportam-se como bons samaritanos. Recordei-me das palavras de Jesus em Mateus 24:31-46.
Madre Teresa repetia que cuidava de mendigos e leprosos com todo amor, porque Deus poderia estar disfarçado no meio deles. E as palavras de Jesus confirmam: “Digo-lhes a verdade: o que vocês fizerem a algum dos meus menores irmãos, a mim o fizeram”.
Fonte: www.ricardogondim.com.br
Caro pr. Juber,
ResponderExcluirEsse texto revela como muitos estão se sentindo nos dias de hoje, com tanta confusão que tem havido no meio evangélico. Acompanho seu blog e o considero muito bom, com assuntos interessantes como os textos da série "decepcionados com igreja" que acompanhei com avidez.
Paz do Senhor.
Elias Santos Assunção.
Elias Santos,
ResponderExcluirFico feliz que você esteja sendo edificado através deste blog. A série "Decepcionados com Igreja" vai continuar em breve, dei só uma pausa no tema. Tem muita alma sobrevivente mesmo. Obrigado pela visita e pelas palavras.
Graça e Paz.
Juber,
ResponderExcluiresse texto do Gondim é mesmo muito bom. Já o havia lido algumas vezes.
Estou lendo agora o alma sobrevivente e cheguei a Gandhi. É mesmo um livro formidável.
Abrçs,
Roger
Esse é um maravilhoso testemunho que deve ser levado a muitos certamente.
ResponderExcluirLi duas vezes " Alma Sobrevivente" do Phillip Yancey, aliás, já todos de sua autoria, e posso dizer que pouquíssima coisa me fugiu a concordância, em especial este livre é uma aula de vida e de cristianismo. Yancey consegue sintetizar em palavras maravilhosas a Vida cristã de pessoas incríveis como Paul Brandt, Martin L. King e outros.
É impossível não ler.
Como sempre um ótimo texto.
Caro Juber,
ResponderExcluirA Paz do Senhor!
É muito bom entendermos o texto que nos incentrivqa a permanecermos na vocação para a qual fomos chamados, no entanto, não podemos perder a conciência que existem outras vocação, igualmente aprovadas por Deus!
Isso é a pluralidade do evangelho!
Um grande abraço!
Pr. Carlos Roberto
Roger,
ResponderExcluirGondim é um grande pensador evangélico. Quanto ao livro Alma Sobrevivente, também estou terminando de lê-lo. Acheio-o muito bom e quanto mais eu o lia, mais eu creio nos que são chamados segundo a "Ordem de Melquisedeque".
Abraço.
Alice,
ResponderExcluirRealmente tanto este livro do Yancey, como os outros dele, são de fato obras-primas. É um grande escritor cristão sem dúvida alguma.
Graça e Paz.
Pr. Carlos,
ResponderExcluirInteressante essa questão da vocação. Há pessoas que são desafiadas a largar tudo e se tornar um “missionário”, no sentido tradicional da palavra. Mas Deus tem guiado outros para um caminho diferente. Eles representam um novo tipo de cristãos e missionários cada vez mais necessário (principalmente em certas partes do mundo). Gente que serve a Deus com suas profissões, sendo testemunhas do poder do Evangelho em seu campo de atividade profissional, com excelência, inteligência, convicção e generosidade.
Graça e Paz.
Que bela experiência, que belo texto. Eu percebo que as instituições, as estruturas, por si só, não fazem grande coisa pelo ser humano. Também fico chocada com o desperdício de dinheiro e de tempo com futilidades, num mundo que clama por ações como a do reitor e de sua esposa. Já vi muito desperdício no meio cristão, e não só de dinheiro: de tempo, de talento, de saliva.
ResponderExcluirUm abraço,
Maya,
ResponderExcluirSim, existe mesmo muito desperdício no meio cristão, seja em tempo, recursos humanos ou financeiros. Fico vendo quanto energia gasta em coisas de menor importância, lutas por posições na igreja, promoção de eventos só para sua agremiação religiosa. Sinceramente é uma mediocridade de pensamento que ora dá raiva ou dó.
Obrigado pela participação.