Muito de nossos problemas têm a ver com a dificuldade de lidar com o passado. Relutamos em admitir que não passamos de virgulas logarítmicas. Nossa história se resume a um conto ligeiro. Desgastamo-nos como roupa usada. Amnésicos, corremos alucinadamente em busca de um ideal de felicidade que mal conseguimos definir (bom lembrar que há poucos séculos a felicidade não era um fim, apenas uma agradável consequência da sabedoria). Cada dia cavamos mais fundo o abismo que nos separa dos anos em que pessoas se contentavam em viver com integridade, justiça, bondade, lealdade – e que, por algum motivo, acabavam felizes.
No culto da estética, esquecemos que já se valorizou o ancião mais que o jovem. O processo pode ter se arrastado, mas não faz muito tempo em que simetria, harmonia e, por que não?, beleza, perdiam para a experiência. A afirmação permanece: se o encanto do jovem vem da força, a formosura do idoso emana de seus cabelos grisalhos; o respeito que se nutriu pela madureza sobrepujou a admiração pelo viço juvenil.
O novo milênio se inicia com um monumental descaso com o passado. O governo dos Estados Unidos, por negligenciar ensinos da história, não atentou: George Washington foi eleito presidente quando o Iraque já acumulava uma cultura de mais de cinco mil anos. Depois de uma guerra desigual, assimétrica, o povo iraquiano mostrou que mesmo pobre, aprendeu a lidar com fracasso, resiliência e triunfo
Europeus perdem por não recordarem que antes das grandes navegações, mesmo nas colonizações predatórias, não havia fome e miséria na África nem na América Latina. Nações que europeus chamaram de “primitivas” eram na verdade civilizações complexas e bem hierarquizadas; podiam não conhecer o mundo que os exploradores trouxeram em suas embarcações, mas, pelo menos, comiam e morriam com dignidade. Para nações autóctones, a civilização da espada e da cruz representou retrocesso.
A falta de sintonia com o passado faz com que muitos crentes brasileiros desconsiderem que a consolidação evangélco-protestante no Ocidente aconteceu com a promíscua relação do capital com a fé na primeira metade do século XX. Mesmo com todo o esforço dos reformadores de criarem “confissões de fé”, a versão midiática-hedonista-pragmática do cristianismo é recente. Lideranças do “movimento evangélico” demoram a entender que eles não passam de uma síntese novíssima entre pietismo alemão, puritanismo inglês, fundamentalismo e pentecostalismo norte-americanos. Sem raízes históricas, poucos tomam conhecimento que antes dos evangélicos sobram exemplos de fé entre cristãos ortodoxos gregos, armênios e russos. Bem antes de Lutero, muita gente amou a Deus na igreja católica romana. Mesmo no estigmatizado período medieval, também chamado de milênio de trevas, Jesus teve seguidores fieis.
O esforço de manter-se atual, sem passado a ser celebrado, pode dar ao presente maior agilidade, mas rouba densidade existencial. Sem olhar retrospectivo, poucos se dispõem enfrentar a realidade de que somos efêmeros, quebradiços, mortais. Só diante da poeira dos séculos conseguimos contemplar a morte como jeito de aproveitar melhor a vida. Lembrar que não somos deuses, humilha enquanto ajuda na convivência com o próximo. O essencial se esconde na sucessão do presente que nos escapa e que rapidamente vai para o pretérito. Só com a alma desarmada da arrogância de imaginar-se única, perene, imbatível, senhora do tempo, aprendemos que não viveremos para vingar a razão de ser, mas para curtir cada instante como se fosse o último. O passado tem muito o que ensinar.
Fonte: www.ricardogondim.com.br/
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