Então,
Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da
lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério.
Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a
lei: morte da adúltera por apedrejamento.
Isso
foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que
apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um
“direito da soberania popular revolucionária”, enquanto se matam, nas mesmas
praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o
fundamentalismo islamita).
E
assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e
crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar…
Mas
voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho.
Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo
que exige, como dizem los hermanos, “cojones”. Jesus disse que quem tivesse
livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.
Esta
é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da
hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral
ou político.
Mas
Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos
gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o “regime da
verdade” (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é
externo e político.
O
problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento,
inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele
sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro
homem ou para assembleia “soberana”, como na filosofia ou democracia gregas.
Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda
parte e sabe de tudo.
Sabe-se
que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença
entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia
(eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.
O
problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de
vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim
mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da
verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.
Na
Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de
mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é
sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo.
Por
isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço
interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de
me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.
O
crítico Erich Auerbach, no seu “A Cicatriz de Ulisses”, parte da coletânea
“Mímesis”, reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e
agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto
marcado por uma tensão moral.
Ainda
na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos “Salmos”, O
encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir
para si mesmo.
Santo
Agostinho com suas “Confissões” faz eco a David. A literatura monástica e
mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no
pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o “mago do norte”, ancestral direto
do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito,
chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.
A
filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si
mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia
política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é
barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam
nossa própria face.
Fonte: Luiz Felipe Pondé, na Folha
de S.Paulo
Meu Comentário: Postei esse texto do Pondé, porque geralmente gosto do que ele escreve, não significando com isso que concorde com tudo. O filosofo pernambucano de origem judaica, não é cristão, mas no ano de 2011, ao conceder uma entrevista às páginas amarelas da revista Veja fez uma interessante defesa do cristianismo. Já li dois de seus livros: "O Catolicismo Hoje (2011)", e "Guia Politicamente Incorreto da Filosofia (2012)". Recomendo a leitura de ambos.
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