sábado, 14 de fevereiro de 2015

Os dons do Espírito Santo são para hoje? Uma resposta aos cessionistas

Nos últimos 100 anos houve no Brasil e no mundo inteiro uma efervescência especial em função da redescoberta dos dons do Espírito Santo. Textos como o de I Coríntios 12, empoeirados, tamanho era o desuso, e assuntos teológicos relacionados ao Espírito Santo e a milagres até então considerados obsoletos e esclerosados ─ verdadeiros apêndices da teologia, portanto desnecessários aos olhos dos teólogos ─ ganharam vida e poder de provocar a fé de milhões de pessoas na Igreja de Cristo em todo o mundo. Assim, teve início um dos mais importantes movimentos na história da fé cristã. Isso aconteceu quando as pessoas começaram a indagar: “Por quê? Por que estas coisas estão registradas nas Escrituras? Por que não se dá ênfase a elas? Por que não são usadas na prática evangelizadora da Igreja? Por que não são ensinadas? Por que não são ministradas ao povo de Deus?” E quando tudo isto começou a acontecer, surgiu o que hoje conhecemos no mundo inteiro como o Movimento Pentecostal, que no Brasil chegou no início do século XX, começando um trabalho que já perfaz milhões de membros, sendo sem dúvida a maior representação evangélica do país.

Meu primeiro ponto é o seguinte: há, em nossos dias, os que afirmam que toda essa movimentação acerca do Espírito Santo é falsa. Eles apresentam três tipos de argumentação para provar que ela não faz sentido. Dizem, por exemplo, que os dons espirituais não são contemporâneos; que esses fenômenos carismáticos cessaram no fim da era apostólica e nada de legítimo há neles.

ARGUMENTOS CONTESTADORES À MOVIMENTAÇÃO ACERCA DOS DONS DO ESPÍRITO SANTO

Primeiro Argumento: Chamo a isto de “tensão entre os meios de graça e os dons espirituais”. É o que alguns irmãos de teologia reformada colocam como primeiro obstáculo para que se admita a vigência dos dons carismáticos. Eles dizem: “Nós temos a Palavra, meio de graça por excelência, também a oração e os sacramentos, como a Ceia do Senhor, meios de graça esses que devem edificar todo o povo de Deus.
Como podemos então admitir que alguns possuam um dom especial, como o de línguas? Que diz o Novo Testamento? Que ele edifica aquele que o usa. Portanto, se outros não o possuem, isto significa que essas pessoas têm uma espécie de adicional de edificação que outros não têm. Cria-se dessa maneira uma incongruência, uma espécie de privilégio, de prerrogativa entre o povo de Deus”.

Mas que resposta se pode dar a essa colocação? A resposta é a seguinte: tal tensão nunca existiu na mente de Paulo, pois ele afirmou a Palavra como meio de graça por excelência no tempo em que os dons espirituais vigoravam. Em II Timóteo 3:16, O apóstolo diz que: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado pra toda boa obra”. Acontece que no tempo em que Paulo disse isso os dons espirituais existiam; esta era uma declaração contemporânea à manifestação do dom de línguas. Paulo afirma a Palavra como meio de graça, apta para aperfeiçoar e edificar a nossa vida, mas simplesmente não crê que as coisas sejam auto-excludentes. Posto que o dom, como o de línguas, é uma espécie de ajuda para quem está precisando de edificação adicional, e não para aquele que a tem de sobra. Pois não é para sobrar. O Espírito concede a cada um como lhe apraz, justamente porque alguns carecem desse adicional, andam tropeçando, necessitando de reforço em sua vida íntima e espiritual.

 Com isso não estou dizendo que a Palavra é insuficiente para edificar, mas que ela não é um livro, é a Verdade. Verdade essa que tem um conteúdo. Conteúdo esse que inclui a realidade dos dons espirituais. Assim, os dons só seriam competidores da Palavra se ela não os mencionasse. Mas é justamente o contrário que acontece é que a Palavra que os menciona. Daí serem eles parte da ministração da Palavra como meio de graça. Quando ela menciona algo de Deus para a nossa vida, tal coisa passa a ser a própria Palavra em ação.

Segundo Argumento: O texto de I Coríntios 13:8-10 diz que “quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado”. Com base nisto, aqueles não aceitam a contemporaneidade dos dons espirituais argumentam: “Ora, o que é perfeito e que estava sendo aguardado já veio. “Trata-se do cânon sagrado, da arrumação da Bíblia na ordem definitiva em que ela se encontra hoje; portanto os dons cessaram”.
Este segundo argumento contra a contemporaneidade dos dons espirituais gira em torno de interpretações de I Coríntios 13:8-10 e a presumível cessação dos dons. Que resposta se deve dar a esse problema?

Antes de mais nada, em momento nenhum, em I Coríntios 13:8-10, ou sequer no N.T., menciona-se que e a formação do cânon sagrado faria cesar os dons do Espírito. Acontece que nesse texto, não se diz qualquer coisa relacionada à formação do cânon sagrado, ou algo semelhante. Tampouco o N.T., apóia essa teologia. Sabemos que o que é perfeito ─ referência feita em I Coríntios 13 ─ não é apenas a Palavra, conquanto seja ela também perfeita. Além dela há muitas outras coisas perfeitas no mundo de Deus. A Palavra é perfeita, exata, fiel, mas o texto de I Coríntios parece deixar claro que se trata de uma perfeita-era, um perfeito-estado, não exclusivamente de uma coisa perfeita.

Cumpre-nos perguntar: quando Paulo fala do que é perfeito teria ele qualquer possibilidade de pensar em algo como um cânon sagrado? Será então que ao declarar que quando viesse o que é perfeito (supondo que fosse a formação do cânon sagrado), dons e tudo que é em parte seriam aniquilados? Estaria ele pensando realmente no cânon sagrado?

Na mente de Paulo ─ sem a menor sombra de dúvida ─ o que era perfeito, o que viria, era a parousia, ou seja, a segunda vinda de Cristo. Ele se referia à consumação geral de todas as coisas. A prova de que em I Coríntios 13:8-10 o que é perfeito não é o cânon sagrado, e sim a vinda do Senhor, está no próprio texto. Ele fala por si mesmo através de algumas das metáforas que usa. E quais são elas? A primeira metáfora é a que se refere ao desenvolvimento do ser humano. Diz o texto: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino (...)”. (v.11) Em II Coríntios 3:18 Paulo se refere mais uma vez ao crescimento humano em Cristo: “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando como por espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito”. E assim se ensina que o homem-em-Cristo vai se desenvolvendo, atingindo estatura, sendo transformado, ganhando varonilidade e absorvendo a imagem adulta da própria divindade. Em ambos os textos (I Co. 13:8 e II Co. 3:18), o mesmo ponto de perfeição é apontado: a realização humana final em Cristo, na sua volta.

A segunda metáfora que Paulo usa é a contemplação no espelho. Ele diz que hoje nós estamos contemplando o Senhor como por espelho, opaca e obscuramente, mas um dia iremos vê-lo plenamente. Outra vez o texto de II Coríntios 3:18 será para nós muito esclarecedor. Nele Paulo usa de novo essa mesma metáfora, e diz o que tal figura significa. Estamos vendo hoje indiretamente a face do Senhor, através da Palavra e da reflexão da fé, como por espelho; mas estamos indo de glória em glória, sendo diariamente mudados pela ação do Espírito, que faz nosso caráter se conformar ao de Cristo. Tal processo durará até aquele dia, quando o Senhor voltar. Teremos então a nossa substância-essencial glorificada; seremos semelhantes à sua imagem. Essa será à glorificação da nossa própria vida no Senhor, quando absorvermos a totalidade da natureza essencial de Deus.

Portanto, o que é perfeito em I Coríntios 13 não é o cânon sagrado ─ ainda que a Palavra seja perfeita e impoluta. Aquilo a que Paulo se refere é a paraousia, a consumação geral, a glorificação dos cristãos, quando então seremos semelhantes ao Senhor ─ perfeitos,em comunhão íntima, vendo-o face a face, quando poderemos abrir mão da fé, porque já não haverá necessidade de crer naquilo que não vemos; a esperança de nada servirá, pois teremos alcançado tudo quando hoje esperamos; e ficará tão somente o amor, porquanto tudo quanto se vive diante do Deus que é amor, é amor. Dessa forma Paulo está ali se referindo à consumação geral, no dia eterno em Cristo Jesus. Esse é o perfeito que aniquilará todas as coisas temporárias.

Se supusermos que a formação com o consequente encerramento do cânon sagrado, aniquilou os dons, então esse entendimento vai destruir a própria teologia, pois não apenas as línguas e profecias cessariam, mas também ciência passaria. Em I Coríntios 13:10, Paulo diz: “Quando, porém, vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado”, Lembre que ele disse: “...havendo profecias, desaparecerão; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, passará” O que estou querendo dizer é que esta hermenêutica e esta exegese ─ que diz que o que é perfeito é o cânon sagrado ─ reside no fato de que o cânon foi formado e as Escrituras estão aqui, completas, perfeitas. Em razão disso profecias desapareceram, dons passaram; mas nesse caso não só línguas e profecias teriam passado, mas a própria teologia, pois o texto é claro quando diz: “... havendo ciência passada”. A ciência aí referida não é, entretanto, a secular. Esta não passou, cresce a cada dia. A referência é à ciência do contexto antecedente, que é precisamente a espiritual, referida antes (I Co. 12:9), e de cuja sabedoria a teologia depende fundamentalmente. Então a própria teologia acabaria quando da formação do cânon sagrado. Por isso é que eu digo que se trata de uma tremenda contradição, essa de, em nome da teologia reformada e do cânon sagrado, acabar-se com os dons espirituais como línguas e profecia, e não fazer tal interpretação cair também sobre o dom de ciência. Assim, em nome da teologia, acabar-se-ia com a teologia. 

Se os que não crêem na contemporaneidade dos dons espirituais pelos menos fizessem uma exegese imparcial, sem pretender apenas forçar e arbitrar em cima da cessação de alguma coisa, sem perceber as implicações amplas do texto, então eu me sentiria satisfeito. Mas como tal raciocínio acabaria com a própria teologia, como acabaria a ciência do pensar teológico, eles optam então por fazer sua exegese terminar com as línguas e profecias, nas não com a ciência teológica. Além do que, mesmo que tais teólogos fossem suficientemente honestos para levar os resultados de sua teologia às últimas conseqüências, isso também se chocaria com Daniel 12:4, que nos diz o contrário ─ que nos últimos tempos a ciência teológica estaria em pleno desenvolvimento, ou seja, no tempo do fim, o Livro Santo teria esquadrinhado e o saber sobre ele se multiplicaria imensamente.

Terceiro Argumento: Neste ponto o discurso é o seguinte: “A História da Igreja não registra, entre  400 e 1700, relatos de legítimas manifestações de dons espirituais. Se tais dons fossem de fato bíblicos e para hoje a Igreja não nos teria desprezado”.

Admitindo que não possamos acreditar no que dizem alguns biógrafos sobre a prática dos dons espirituais na vida de Lutero e outros importantes homens de Deus do passado, ainda assim esse argumento não prova nada além do seguinte: que a vida espiritual da Igreja praticamente morreu nesse período; que nesse tempo havia total ignorância das Escrituras e que, em vista disso, a ênfase dos reformadores se dirigia às questões soteriológicas, ou seja, às questões relacionadas à doutrina da salvação, pois era nesse campo da teologia que residiam as polêmicas daqueles dias.

Argumentar que na história da Igreja não houve manifestação dos dons, e que isso prova que eles cessaram não evidencia nada, pois entre os anos 400 e 1500 também não houve nenhuma ênfase na doutrina da justificação, pela fé, o que não significa que Deus parou de salvar. Além do que, usar a história como meio de provar que os dons cessaram não faz sentido com o melhor da nossa hermenêutica reformada, que nos ensina que não é a História que julga a Palavra, mas a Palavra que julga a História.


O QUE ACONTECEU AOS DONS ESPIRITUAIS ENTRE OS ANOS 400 E 1700

Faço, no entanto, uma pergunta: O que aconteceu aos dons espirituais entre os anos 400 e 1700? Sugiro quatro respostas a esta questão.
Primeira Resposta: A ignorância espiritual e bíblica que o Catolicismo Romano infundiu no povo impediu o florescimento dos dons durante esse tempo. Do ano 400 até a Reforma, e pouco além, como os reformadores tinham preocupações de caráter mais soteriológico do que carismático e escatológico ─ assuntos em que raramente tocam em seus escritos ─, não houve quase nenhuma reflexão teológica a respeito dos dons. O fato é que a Igreja Católica se encarregou de infundir uma ignorância espiritual absoluta na mente das pessoas.
Segunda Resposta: Os pré-reformadores ─ levantados por Deus antes da Reforma ─ ergueram sua voz falando em nome de Deus, sem quase mencionar o assunto dos dons. A verdade é que eles tinham outros temas a tratar ─ mais importantes e perigosos para o Evangelho ─, e que os preocupavam muito mais, como: o poder do papado, a salvação pelas obras, a bruxaria na Igreja, e inclusive a venda de indulgências.

Terceira Resposta: A mesma preocupação soteriológica dos pré-reformadores também envolveu a mente dos reformadores. Dizer que os dons não são vigentes porque estes não falaram neles deveria levar-nos pelo menos às seguintes decisões extremadas:
1 - Jogar fora o livro de Tiago, porque Lutero não o entendia, e era de opinião que não devia fazer parte do cânon sagrado.

2 - Jogar fora também o livro do Apocalipse, porque Calvino o julgava complicado demais, e afirmava não o compreender muito bem. Para Lutero, havia uma divergência quase inconciliável entre a teologia de Paulo e a de Tiago. Para Calvino ─ como já disse ─ o Apocalipse era inextrincável. Nem por isso desprezamos Tiago, ou queimamos o Apocalipse.
3 - Os dons se manifestaram em algumas ocasiões, e de maneira descontrolada, o que levou os líderes a temê-los pelo que aconteceu: falta de educação no seu uso. Do ano 400 para cá verificaram-se manifestações, mas tão loucas, que as lideranças ficaram simplesmente apavoradas. Além disso, do terceiro para o quarto século houve os problemas com os montanistas, grupo carismático fanático que se levantou e influenciou tremendamente alguns segmentos da igreja, os quais viviam profetizando sobre a vinda do Senhor. Eles criaram um alvoroço tão grande na Igreja, que as lideranças ficaram apavoradas com tudo que dizia respeito a manifestações carismáticas. 


Continua na próxima postagem... 

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