Minha
primeira tentativa de explicação é que o poder pentecostal comportou-se como
uma habilitação para o desempenho de tarefas tão somente. Gente com poder faz
mais e melhor. A conclusão óbvia foi que apenas os que recebessem tal virtude,
o Batismo com o Espírito Santo, sinalizado primeira e necessariamente com a
fala prodigiosa de línguas estranhas, teriam legitimidade para o exercício
ministerial. Receber “poder” transformou-se em ter “poder”, legitimidade de
mando e prestígio diante dos demais. Uma vez falando em línguas, o próximo
passo era ser diácono. Vi tanto crente devoto e talentoso amargar o
desprestígio diante da igreja! Vi tantos irmãos sinceros impedidos de desenvolverem
ministérios na igreja porque não falavam em línguas! Também vi tanta gente de
conduta questionável exercendo o mando apenas porque um dia falou em línguas
estranhas! As disputas de poder, busca de títulos, hierarquização dos
ministérios são características fortes e inegáveis dos ambientes pentecostais
clássicos.
Outra
leitura que faço é a da cria indesejada do pentecostalismo, o
neopentecostalismo. Aqui me arrisco de novo em uma explicação. O
neo-pentecostalismo nasceu do adiamento pentecostal da reflexão. As
manifestações derivadas do neopentecostalismo cada vez mais bizarras e cada vez
se substituindo mais rapidamente por outras, marca da lógica de mercado, foram
recebidas com fluência no ambiente pentecostal clássico. Ávidos pelo poder em
sua expressão mais performática, inconformados com a perda do fenômeno pentecostal
das primeiras décadas, nós pentecostais tornamo-nos presas fáceis para a
chamada teologia da prosperidade e movimentos da fé de origem norte-americana.
Rapidamente nosso pentecostalismo migrou do fervor missionário para o êxtase
narcisista. Lotamos auditórios para assistirmos o espetáculo de ilusionistas
religiosos derrubando no chão crentes sugestionáveis. Escancaramos nossas
portas para ouvir com ingenuidade pregadores influenciados pelo neognosticismo
originado na Ciência Cristã, também exportado pela cultura evangélica
norte-americana. Alguém já disse que os alemães inventaram a teologia, os
americanos estragaram e nós consumimos!
Diante
disso, proponho uma revisão de nossa pentecostalidade. Como emblema do nosso
pentecostalismo, o falar em línguas pode ser o ícone deste movimento aqui
revisitado. Façamos do falar em línguas nosso ponto simbólico de reflexão e
construção deste novo pentecostalismo. Dentro do discurso tradicional da
doutrina pentecostal, o falar em línguas estranhas, a glossolalia de Atos
2, é o primeiro sinal necessário e evidência do Batismo com o Espírito Santo.
As línguas estranhas são o fenômeno da segunda benção. Esta por sua vez,
distinta da salvação, sujeita e posterior a ela, é o componente carismático de
Deus para o cumprimento da tarefa missionária da igreja (At 1.8). A conclusão
imediata da doutrina pentecostal é que ninguém está plenamente apto para o exercício
ministerial sem o batismo com o Espírito Santo e este evidenciado pelo falar em línguas. Como
também, o sinal de línguas, freqüentemente diferenciado pelos manuais
pentecostais do dom de línguas, é a porta de entrada dos dons espirituais
listados por Paulo em 1Co 12.
A
relação óbvia das línguas com o poder precisa ser enxergada na prática
pentecostal. Quem fala em línguas tem poder. Os que ousam discutir a relação
necessária do Batismo com as línguas ouve a questão sempre: mas como saber se
alguém foi ou não batizado sem as línguas? Para conferir o estatuto de
competência espiritual ao então batizado com o Espírito Santo precisamos de uma
evidência forte. Para promovê-lo à elite dos contemplados pelo poder carecemos
de uma indicação indiscutível. O que novamente indica que o falar em línguas
alça o indivíduo à categoria dos que podem em detrimento dos que não podem. O
critério de conferir cargos eclesiásticos ao que fala em línguas aprofunda a
relação línguas-poder. E o faz de forma mais grosseira, porque agora quem fala
em línguas é promovido na hierarquia de poder. Diácono, presbítero, evangelista
e pastor, os homens do mando têm que carregar a chancela das línguas estranhas.
Com
muita freqüência ouço desabafo de pessoas aflitas dentro da igreja. Sentem-se
excluídas por Deus da benção do Espírito Santo. São crentes leais. Homens e
mulheres íntegros e apaixonados por Deus. Ouço de homens que morreram sem
realizarem o sonho do exercício ministerial por também não terem sido
contemplados pelo Batismo.
Esta
perspectiva cria algumas situações no mínimo ridículas. Pessoas que falam
qualquer coisa que se pareça com o que ouvem de outros. Assovios. Grunhidos.
Glórias a Deus repetidos freneticamente até que se tornem impronunciáveis. –
Fala “glória, glória, glória” bem rápido, irmão! Outros são ensinados a repetir
o que estão ouvindo. Faz-se qualquer negócio para estar entre os abençoados.
Para ser contado entre as mãos que se levantam e fornecem os números
alvissareiros do pregador.
Há
os pregadores que descobrem fórmulas de como levar o povo ao Batismo. Em um dia
desses, um amigo confidenciou-me seu segredo avivalista: – Conto muitos
testemunhos e depois ensino às pessoas que peçam uma vez só e depois apenas
louvem e glorifiquem a Deus. É tiro certo! Perguntei-lhe: mas e o Espírito
Santo? E o nosso relacionamento pessoal com Jesus? Se não fizer tudo como no
figurino, Jesus não faz? Isso parece mais um abracadabra pentecostal
do que uma visitação prodigiosa do Espírito Santo de Deus!
É
preciso que se diga que por mais que funcione, a doutrina pentecostal da
evidência inicial do Batismo com o Espírito Santo é oca de conteúdo bíblico.
Nos chamados quatro pentecostes de Atos (2.1-13; 8.4-25; 9.24-48; 19.1-6), nem
todos registram a glossolalia e, exceto o do Dia de Pentecostes em Jerusalém, o
sinal das línguas estranhas não é a única evidência. Lucas lista também as
profecias, adoração e alegria. Entre os samaritanos nada diz. Apenas afirma que
receberam o Espírito (At 8.17). As línguas são um sinal freqüente, mas não um
sinal imprescindível.
Nas
cartas, onde se ensina sobre os dons espirituais, nada se fala sobre o Batismo
com o Espírito Santo como evidenciado necessária e inicialmente pelo falar em línguas. Ao contrário,
as línguas são listadas entre outros dons vários, cuja riqueza está na
diversidade. Nem todos fazem as mesmas coisas nem experimentam os mesmos dons.
É a vitória do imponderável Espírito Santo sobre a mesmice dominadora das
práticas de poder humanas(1Co 12.28-31).
Não
vemos os apóstolos recomendando às igrejas a busca do Batismo com o Espírito
Santo. Ensinam a busca dos dons em sua diversidade. Falam a essas igrejas
partindo do pressuposto de que já experimentaram a segunda benção. Mais ainda,
em Atos, Lucas não descreve nenhum caso de batismo com o Espírito individual.
Salvo o registro de que Paulo, após a oração de Ananias, foi curado de sua
enfermidade e ficou cheio do Espírito. Todos os demais registros são de um
fenômeno coletivo. O Espírito foi derramado sobre todos os que estavam no
cenáculo em
Jerusalém. Entre os samaritanos, Pedro e João impuseram as
mãos e eles receberam o Espírito Santo. Na casa de Cornélio, o Espírito desceu
sobre todos os que ouviam a pregação de Pedro. Entre os discípulos efésios,
Paulo os batizou nas águas e todos foram cheios do Espírito.
O
Novo Testamento ensina uma experiência espiritual comunitária, porque é uma
experiência de relacionalidade e não de exclusividade. Os dons do Espírito,
curiosamente, só se justificam na comunhão. Paulo não deixa dúvidas sobre isto
na tríade de capítulos, 12, 13 e 14, da Primeira Carta aos Coríntios, onde
ensina sobre o fervor inteligente dos dons no culto. 12.7, e 14:2-4.
Não
há alguns batizados em detrimento de outros na igreja local, no ajuntamento dos
irmãos. Quando um é, todos são. Esta é a lógica da Bíblia. Quantos foram
batizados? Esta é a pergunta recorrente no ambiente pentecostal. Um equívoco. A
pergunta bíblica não é esta: A igreja já foi batizada com Espírito Santo? Isto
significaria dizer que qualquer um que dela fizer parte torna-se participante
da segunda benção, que certamente será por ele experimentada com intensidade em
algum momento e partir de algum dom espiritual.
Finalmente,
o dom de línguas, ao contrário do que somos levados a crer na ambiência
pentecostal, não é um sinal de poder, prestígio e orgulho. É um sinal de
fraqueza, humildade e esvaziamento. Falamos línguas que sequer conseguimos
entender(1Co 14.14). O sinal mais freqüente do Batismo com o Espírito Santo é o
da fala de algo que nós mesmos não conseguimos elaborar. Isto que recebemos de
Deus, por sua graça, a salvação em Cristo é algo tão superior a nós, tão acima
de nossos méritos e habilidades que sequer conseguimos fazer caber em nossa
linguagem. Outras línguassão
as que falam com satisfação, mas apenas para o íntimo de quem fala. Aquele que
fala em outras línguas é lembrado e torna-se um lembrete de Deus de que é
limitado. De que o Reino do qual participa não foi conquistado por suas
habilidades e, portanto, quem quer que dele participe precisará depender do
Espírito Santo de Deus, o Outro Consolador que
nos guiará em todas as coisas.
O
dom de línguas é um lembrete com doce vergonha da nossa incapacidade de fazer
coisas. Precisamos de Deus. Precisamos uns dos outros. A descrição da igreja
pentecostal em Atos não é de uma igreja potente e imponente. Mas de uma
comunidade de irmãos que se amavam concretamente. At 2.44-47.
No
dom de línguas somos levados a um esvaziamento de poder. Nosso poder caído, de
gente pecadora. O poder de dominação do outro e perpetuação de si mesmo é
substituído por um outro poder. Poder do Espírito. Bem maior do que a nossa vã
linguagem pode pronunciar. O mesmo que veio sobre Jesus e o capacitou a
encarnar o amor de Deus entre os homens, mesmo sem ter falado em outras
línguas. O mesmo poder que capacitou Jesus a fragilizar-se como pessoa até a
morte de cruz (Fl 2.5-8). A enfrentar o poder das Trevas no palco do Calvário.
A vencer o poder maligno não com mais poder, mas com outro poder. O poder do
amor que se enfraquece para salvar.
Mais
do que nunca, nosso pentecostalismo precisa redescobrir sua busca de poder. É
inadiável uma renúncia deste poder violento de dominação religiosa. Não somos
chamados por Deus para abalar nossas cidades com o poder do Espírito. Nossa
gente já está abalada demais pela violência, pelos maus governantes, pelo mercado
implacável, pela competitividade desumanizante, pela miséria social para sofrer
mais abalos.
Nossa
vocação pentecostal precisa seguir os passos do Mestre. Cheio do Espírito(Lc
3.21-22; 4.1-13), antes de qualquer tarefa, venceu a tentação do Diabo de viver
por um outro poder que não o que recebera no Jordão sob a fala amorosa do Pai: “Este é
omeu filho amado em quem tenho prazer.”
Se
no Jordão, após o batismo de João, Jesus foi batizado no Espírito
Santo. No deserto, solitário e suscetível, foi batizado pelo Espírito em
nossa humanidade. Na oferta oportuna do Diabo, Jesus renunciou o poder de não
ser gente, de embrutecer diante da mais frágil manifestação de fraqueza humana,
a fome: transforma
esta pedra em pão. Reduzir um tempo de intimidade com Deus
e com a sua humanidade à magia de atalho para a saciedade seria ridicularizar
tudo o que Deus já havia ofertado. Nem só de pão viverá
o homem, mas de toda a palavra que vem
da boca de Deus.
Recusou-se
ao poder de conquistar o mundo em fama e glória, de ter uma imagem brilhante de
poder: tudo isto de
darei se prostrado me adorares. O poder que veio exercer não
atrairia o mundo pela glória e fama, mas pela graciosa entrega de si mesmo em
amor. “Mas eu, quando for
levantado da terra, atrairei todos a mim” (Jo
12.23-33).
Deu
as costas para o poder de ser uma exceção de segurança e felicidade em um mundo
inseguro e infeliz: “Se
és o Filho de Deus, joga-te daqui para baixo.
‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para o
guardarem; com as mãos eles o segurarão,para que você não tropece em alguma pedra’”. Sua
resposta tem que ser a nossa: “não colocarás
o Senhor teu Deus à prova”. Uma gente cheia
do Espírito não carece de espetáculos narcíseos para saber quem é. Já sabemos
quem somos. O Espírito já nos foi dado (Lc 11.13). Qualquer outra prova é uma
exigência idólatra e tola.
Alguém
me perguntou recentemente: qual é o seu pentecostalismo? É este.
Fonte: http://elienaijr.wordpress.com/2006/11/24/meu-pentecostalismo-revisitado/
Paz do Senhor pastor Juber. Gostaria de saber se você já teve ocasião de compartilhar sua ideia de pentecostalismo revisado com outros líderes e irmãos pentecostais (fora de um contexto das mídias sociais é claro, pois ao publicar na internet você já compartilhou com todo o mundo, rsrs) de sua região. Se sim qual a reação deles? Desinteresse, oposição ou concordância? Desde já obrigado.
ResponderExcluirIrmão Rafael Filgueira (Fazenda Rio Grande - PR).
Rafael, já tive oportunidade de compartilhar sim com outros irmãos fora das mídias sociais. A reação não teve desinteresse, geralmente são duas posições, ou é contra ou a favor. Uns concordaram outros por já ter idéias cristalizadas na mente há tempos, demonstraram maior resistência.
ResponderExcluirUm abração.
Excelente matéria esta sobre a relação dos dons espirituais e o que dizem ser evidência. Infelizmente este é um subproduto das rupturas dentro do cristianismo e que serviram para a "fundação" desta denominação. É o produto que ela oferece aos néscios na fé (como o sábado para os Adventistas; o nome Jeová para os Testemunhas; o batismo pelos mortos no mormonismo; o rebatismo para os da CCB; o ultracalvinismo para os presbiterianos). Ou seja, cada religião deve ter seu produto para induzir as adesões! Aqueles que sequer tem interesse em examinar as escrituras ou até mesmo a lógica dos fatos são as vítimas que são levadas ao precipício, num abismo que geralmente leva ao esgotamento espiritual. Nada melhor que um deserto para reavaliar a prioridade na fé cristã em relação à Supremacia de Cristo Jesus mediante a graça incompreensível da salvação. Já vi muita coisa esquisita acontecer neste arraial, desde bizarrices até uma apologia ao "desamor entre irmãos". No mínimo, absurdo. Escrevo algumas "pias heresias" em meu blog Cristianismo outsider pelo wordpress, onde sempre que posso dou algumas pinceladas nas tradições dos homens (que é o que realmente invalida a Lei de Deus, que é o Amor). Forte abraço à ti no teu iluminado ministério.
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