quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Frei Betto: Por que fizemos opção pelos pobres (e eles pelo neopentecostalismo)?

Há quem diga que a Igreja Ca­tó­lica optou pelos po­bres e os po­bres, pelas Igrejas evan­gé­licas. Isso tem certa dose de ver­dade se con­si­de­rarmos os ín­dices que de­mons­tram que, nos úl­timos anos, houve di­mi­nuição do nú­mero de ca­tó­licos no Brasil e au­mento de pro­tes­tantes (adeptos das Igrejas his­tó­ricas) e evan­gé­licos (adeptos das Igrejas pen­te­cos­tais e ne­o­pen­te­cos­tais).

No censo de 2000, 73,6% da po­pu­lação era for­mada por ca­tó­licos, e apenas 15,4% de pro­tes­tantes e evan­gé­licos. No censo de 2010, os ca­tó­licos re­pre­sen­tavam 64,6% e os pro­tes­tantes e evan­gé­licos, 22,2%. Em dez anos, o nú­mero de pro­tes­tantes e evan­gé­licos no país au­mentou 61,45%. Hoje eles são 42,3 mi­lhões. Em 1970, eram 4,8 mi­lhões (5,2% da po­pu­lação). Es­tima-se que, a cada ano, são abertos, no Brasil, 14 mil novos tem­plos evan­gé­licos.

Os evan­gé­licos se di­videm em Igrejas pro­tes­tantes tra­di­ci­o­nais ou his­tó­ricas (lu­te­rana, pres­bi­te­riana, ba­tista, an­gli­cana, me­to­dista etc.); pen­te­cos­tais (As­sem­bleia de Deus, Pres­bi­te­riana Re­no­vada etc.); e ne­o­pen­te­cos­tais (Uni­versal do Reino de Deus, Sara Nossa Terra, In­ter­na­ci­onal da Graça de Deus etc.). A mai­oria dos ne­o­pen­te­cos­tais se en­contra nas pe­ri­fe­rias das ci­dades, e 63,7% re­cebem por mês no má­ximo um sa­lário mí­nimo. Daí o in­te­resse pela Te­o­logia da Pros­pe­ri­dade, que propõe uma ética que trans­forma em valor re­li­gioso a as­censão so­cial dentro da mo­bi­li­dade ur­bana.

Pe­da­go­gias apos­tó­licas
En­quanto a pre­gação ca­tó­lica centra-se no dog­ma­tismo (no que se deve crer), a ne­o­pen­te­costal está fo­cada no prag­ma­tismo (o ca­ráter uti­li­tário da fé para se al­cançar be­ne­fí­cios, desde em­prego até a cura de do­enças). Daí o lema ado­tado pela prin­cipal Igreja ne­o­pen­te­costal, a Uni­versal do Reino de Deus – “Pare de so­frer”. É uma pre­gação muito co­lada na au­to­a­juda.

A que se deve tal fenô­meno? Há vá­rias hi­pó­teses. Uma delas é ex­pli­cada pela coin­ci­dência entre a ur­ba­ni­zação bra­si­leira, na vi­rada dos sé­culos XIX para o XX, e a dis­se­mi­nação de Igrejas evan­gé­licas. O êxodo rural, a ur­ba­ni­zação de­sor­de­nada, a quebra de vín­culos fa­mi­li­ares tra­di­ci­o­nais, o in­cha­mento das pe­ri­fe­rias e a mas­si­fi­cação dos meios de co­mu­ni­cação são fa­tores que estão na origem da ex­plosão evan­gé­lica.

Mais re­cen­te­mente, há que con­si­derar os 34 anos de pon­ti­fi­cados con­ser­va­dores de João Paulo II e Bento XVI, que ini­biram, na es­fera ca­tó­lica, a Igreja dos Po­bres, às vezes du­ra­mente re­pri­mida, bem como o seu fun­da­mento teó­rico, a Te­o­logia da Li­ber­tação. No en­tanto, ja­mais foram con­de­nados.
Ca­tó­licos das pe­ri­fe­rias ur­banas e ru­rais que não se sen­tiam mais aco­lhidos em Co­mu­ni­dades Ecle­siais de Base (CEBs) e pas­to­rais po­pu­lares tra­taram de mi­grar para os es­paços evan­gé­licos. E o fi­zeram por duas ra­zões bá­sicas: a ânsia de en­con­trar pos­sí­veis so­lu­ções para seus pro­blemas crô­nicos (en­fer­mi­dades, de­sem­prego, ca­rência de iden­ti­dade nos grandes cen­tros me­tro­po­li­tanos etc.), e o mal-estar quando cha­mados a fre­quentar os tem­plos ca­tó­licos, pre­do­mi­nan­te­mente ocu­pados pela classe média, e nos quais reina o cle­ri­ca­lismo.

As Igrejas evan­gé­licas adotam um mo­delo pas­toral já qua­li­fi­cado de “ca­nibal”. Ins­ta­ladas em an­tigas salas de ci­nema ou ga­ra­gens, elas abrem, di­re­ta­mente nas cal­çadas, sua bo­carra fa­minta de fiéis... Para tais Igrejas, o es­paço fí­sico re­li­gioso não exige ne­ces­sa­ri­a­mente cons­trução de tem­plos. Qual­quer sala ou galpão pode ser trans­for­mado em local de culto. E muitos tem­plos mantêm as suas portas abertas 24 horas por dia, o que é im­pen­sável em se tra­tando de tem­plos ca­tó­licos. Ao se chegar em certos tem­plos evan­gé­licos em plena ma­dru­gada é pos­sível ser re­ce­bido por um obreiro que de­dica es­pe­cial atenção ao fiel em po­ten­cial. Em uma pa­ró­quia ca­tó­lica não é fácil ser aten­dido por um sa­cer­dote, ainda que no pe­ríodo ves­per­tino.
Nos cultos evan­gé­licos há par­ti­ci­pação de fiéis. Adota-se uma es­pi­ri­tu­a­li­dade “per­so­na­li­zada”, pre­des­ti­na­dora, sem di­mensão so­cial. O que fas­cina é o Deus da mi­se­ri­córdia que cura, con­forta, perdoa, ajuda a obter em­prego, traz pros­pe­ri­dade e une a fa­mília. Deus que li­berta o fiel dos ví­cios, do adul­tério, do pe­cado, enfim, das garras do diabo... Es­pi­ri­tu­a­li­dade que pe­netra fundo no co­ração e no bolso do fiel... Nesse mundo de per­dição, a Igreja des­ponta como uma ilha de sal­vação in­di­vi­dual, na qual cada fiel se sente um eleito do Se­nhor. E se de­monstra vo­cação para a mú­sica, seja o canto, seja o do­mínio de um ins­tru­mento mu­sical, o fiel é va­lo­ri­zado pela co­mu­ni­dade re­li­giosa.

Já na Igreja Ca­tó­lica, muitos en­traves di­fi­cultam a adesão dos mais po­bres. Reina o cle­ri­ca­lismo, quase tudo é cen­trado na fi­gura pa­tri­arcal do sa­cer­dote e as mu­lheres par­ti­cipam como meras fi­gu­rantes. Não há mu­lheres di­a­co­nisas nem sa­cer­dotes, quanto mais re­ves­tidas de ca­ráter epis­copal.

As li­tur­gias ca­tó­licas são as­fi­xi­adas pelas ru­bricas canô­nicas que en­travam a im­pro­vi­sação, a dança, a par­ti­ci­pação dos fiéis, os ri­tuais de bên­çãos e curas. Nossos fiéis não passam ne­ces­sa­ri­a­mente por es­colas bí­blicas e nem têm o há­bito de ler e me­ditar as sa­gradas es­cri­turas. Quase toda a apro­xi­mação com a Bí­blia se re­sume em lei­turas li­túr­gicas se­guidas de ser­mões que ra­ra­mente fazem exe­gese do texto e, quando o fazem, ela não está ao al­cance do nível cul­tural dos fiéis.

Os tem­plos e ca­pelas ca­tó­licos não contam com obreiros ou agentes pas­to­rais que, a qual­quer hora do dia ou da noite, estão dis­postos a atender quem os pro­cura e pre­pa­rados para aco­lher o bê­bado, a mu­lher agre­dida pelo ma­rido, o de­sem­pre­gado to­mado pelo de­ses­pero, o en­di­vi­dado sub­merso na an­gústia, a moça aflita pela gra­videz ines­pe­rada e in­de­se­jada...

E por vezes uti­li­zamos uma lin­guagem de­ma­si­a­da­mente po­li­ti­zada ou me­ra­mente mo­ra­lista, sem cor­res­ponder à fome de sa­cra­li­dade do fiel, de mís­tica, de sentir-se aco­lhido pela mi­se­ri­córdia de Deus e pela Igreja como fa­mília ou co­mu­ni­dade re­li­giosa.

Con­ser­va­do­rismo
Desde que os evan­gé­licos des­pon­taram no Brasil, em fins do sé­culo XIX, se ca­rac­te­ri­zaram por uma pos­tura con­ser­va­dora im­pul­si­o­nada pela lei­tura fun­da­men­ta­lista da Bí­blia e pelo pu­ri­ta­nismo. Basta con­ferir o ali­nha­mento da mai­oria das Igrejas pro­tes­tantes e evan­gé­licas à di­ta­dura mi­litar (1964-1985), em­bora al­guns de seus fiéis fi­gurem como már­tires e con­fes­sores da re­sis­tência de­mo­crá­tica, como os ir­mãos Paulo e Jaime Wright, e os pas­tores Jether Ra­malho e Ani­valdo Pa­dilha.

Em­bora haja, hoje em dia, seg­mentos evan­gé­licos abertos ao ecu­me­nismo e, in­clu­sive, à Te­o­logia da Li­ber­tação, o que ainda pre­do­mina é o con­ser­va­do­rismo te­o­ló­gico e po­lí­tico. Nesse início de sé­culo XXI, o alvo do fun­da­men­ta­lismo evan­gé­lico são as po­lí­ticas de di­reitos hu­manos e gê­nero.

Há que des­tacar o avanço das Igrejas evan­gé­licas no uso dos meios de co­mu­ni­cação, cri­ando fi­guras mi­diá­ticas de forte apelo po­pular, como Silas Ma­la­faia, R. R. So­ares e Edir Ma­cedo. A compra da Rede Re­cord, TV aberta, em 1989, pela Igreja Uni­versal, causa um forte im­pacto na for­mação da opi­nião pú­blica na­ci­onal. E o mer­cado fo­no­grá­fico “gospel” gera a maior ar­re­ca­dação da in­dús­tria mu­sical bra­si­leira, em torno de R$ 500 mi­lhões por ano. E o edi­to­rial, R$ 483 mi­lhões por ano.

Já a Igreja Ca­tó­lica lida com a mídia sem o de­vido pro­fis­si­o­na­lismo, so­bre­tudo na es­fera ima­gé­tica, como TV e in­ternet. O má­ximo de au­di­ência ob­tida pelos ca­tó­licos se res­tringe ao su­cesso dos pa­dres can­tores, como Mar­celo Rossi, Fábio de Melo, Re­gi­naldo Man­zotti e ou­tros.

É pre­ciso também des­tacar os seg­mentos evan­gé­licos pro­gres­sistas, como a Renas (Rede Evan­gé­lica Na­ci­onal de Ação So­cial), criada no Rio em 2006, e que con­grega fiéis das Igrejas Ba­tista, As­sem­bleia de Deus, An­gli­cana e Lu­te­rana. Os mem­bros da Renas são crí­ticos ao dis­curso e à prá­tica con­ser­va­dores da ban­cada evan­gé­lica no Con­gresso, con­trá­rios à re­dução da mai­o­ri­dade penal e fa­vo­rá­veis ao diá­logo com re­li­giões de ma­triz afri­cana, ao de­bate sobre a des­cri­mi­na­li­zação do aborto e à união civil e re­li­giosa de ca­sais ho­mos­se­xuais. (Cf. O Globo, 19.09.2015, p. 26).

Rumo à di­reita
Em ou­tubro de 2013, pes­quisa do Da­ta­Folha com­provou que a mai­oria dos bra­si­leiros se iden­ti­fica com va­lores de di­reita. Este re­trato se re­velou quando se in­dagou a res­peito de ques­tões como pena de morte e papel dos sin­di­catos. Dos en­tre­vis­tados, 38% foram clas­si­fi­cados como de centro-di­reita, 26% de centro-es­querda, 22% de centro, 11% de di­reita e 4% de es­querda.

A ten­dência à di­reita é re­for­çada por muitas Igrejas evan­gé­licas in­di­fe­rentes à moral so­cial e de­fen­soras do livre mer­cado. Elas se po­si­ci­onam contra o aborto e o con­trole da na­ta­li­dade; são fa­vo­rá­veis ao tra­ta­mento psi­co­ló­gico de ho­mos­se­xuais, e con­si­deram que a de­mo­cracia é ple­na­mente com­pa­tível com os pa­râ­me­tros do ca­pi­ta­lismo. Ad­vogam o Es­tado mí­nimo e, em nome da “sal­vação da fa­mília”, a cri­mi­na­li­zação dos mo­vi­mentos civis por di­reitos so­ciais.

Con­forme aná­lise da teó­loga pro­tes­tante Ma­gali do Nas­ci­mento Cunha, a ban­cada evan­gé­lica não cresceu tão sig­ni­fi­ca­ti­va­mente, como se pro­pagou, nas elei­ções de 2014. O dis­curso ho­mo­fó­bico em de­fesa da fa­mília e contra o co­mu­nismo não foi su­fi­ci­ente para atrair os votos que es­pe­rava.

Se­gundo o DIAP (De­par­ta­mento In­ter­sin­dical de As­ses­soria Par­la­mentar), o nú­mero de par­la­men­tares evan­gé­licos na Câ­mara dos De­pu­tados não so­freu al­te­ração sig­ni­fi­ca­tiva nas elei­ções de 2014. Es­ti­mava-se que che­garia a uma ban­cada de 100 eleitos (cres­ci­mento de 30%), tendo em vista o au­mento de 20% al­can­çado nos pleitos an­te­ri­ores. Foram eleitos 72 par­la­men­tares. Em 2010, ele­geram-se 66 para o Con­gresso Na­ci­onal, entre de­pu­tados fe­de­rais e se­na­dores.

Es­ti­mava-se que nomes de pro­jeção na­ci­onal, como o de­pu­tado Marco Fe­li­ciano (PSC-SP), atu­al­mente acu­sado de es­tupro, re­ce­bessem ao menos 1 mi­lhão de votos. Um de seus mais fortes cabos elei­to­rais, o pastor Silas Ma­la­faia, da As­sem­bleia de Deus Vi­tória em Cristo, chegou a de­clarar: “Se o Fe­li­ciano tiver menos de 400 mil votos na pró­xima eleição, eu estou mu­dando de nome”. E iro­nizou a re­ação dos mo­vi­mentos so­ciais quando Fe­li­ciano ocupou a pre­si­dência da Co­missão de Di­reitos Hu­manos e Mi­no­rias da Câ­mara: “Quero agra­decer ao mo­vi­mento gay. Quanto mais tempo per­derem com o Fe­li­ciano, maior será a ban­cada evan­gé­lica em 2014”. Ma­la­faia de­veria cum­prir a pro­messa: Fe­li­ciano teve, na eleição de 2014, 398.087 votos.
O PSC acre­ditou tanto no êxito elei­toral de seus can­di­datos que lançou o Pastor Eve­raldo can­di­dato a pre­si­dente da Re­pú­blica.

Ma­rina Silva e Pastor Eve­raldo
Os evan­gé­licos apre­sen­taram, nas elei­ções de 2014, dois can­di­datos a pre­si­dente: Ma­rina Silva e o Pastor Eve­raldo, ambos da As­sem­bleia de Deus.
Ma­rina Silva se des­tacou a partir da morte ines­pe­rada de Edu­ardo Campos, can­di­dato a pre­si­dente pelo PSB, de quem era vice. Isso es­va­ziou a can­di­da­tura do Pastor Eve­raldo, pois os evan­gé­licos, em­bora não sejam ali­ados de Ma­rina Silva, so­maram forças em torno dela mo­vidos pelo an­ti­pe­tismo. Con­tudo, ela não al­cançou o se­gundo turno, fi­gu­rando em ter­ceiro lugar entre os can­di­datos. Com­pa­rado à eleição de 2010, quando também con­correu ao mesmo cargo, houve au­mento de 2% no nú­mero de votos que lhe foram dados: de 19% para 21%. Pres­si­o­nada por li­de­ranças evan­gé­licas, Ma­rina apre­sentou cons­tantes mu­danças de dis­curso, o que pro­vocou a perda de con­fi­ança de muitos de seus elei­tores.

Já o Pastor Eve­raldo teve pouco mais de 780 mil votos, e ficou atrás da can­di­data de es­querda Lu­ciana Genro (PSOL-RS), que ob­teve 1,6 mi­lhão de votos.
O que sur­pre­endeu a muitos foi o apoio de Ma­rina Silva, no se­gundo turno, à can­di­da­tura do opo­si­ci­o­nista Aécio Neves (PSDB). O prag­ma­tismo su­perou os prin­cí­pios.

A ser­vidão vo­lun­tária
La Boétie pu­blicou, em 1576, o Dis­curso da ser­vidão vo­lun­tária, texto no qual ana­lisa esse es­tranho fenô­meno que faz certas pes­soas ab­di­carem de sua au­to­nomia para pensar pela ca­beça alheia e agir se­gundo o seu mestre mandar.

Ocorre em todos os âm­bitos, desde a mu­lher que se deixa sub­jugar pelo ma­rido ao fun­ci­o­nário que ja­mais ques­tiona as or­dens do chefe. Aliás, os cri­mi­nosos na­zistas e os tor­tu­ra­dores bra­si­leiros que che­garam às barras dos tri­bu­nais ale­garam, em sua de­fesa, o cí­nico ar­gu­mento: “cum­príamos or­dens”.
Outro dia, per­guntei a uma se­nhora a quem dará seu voto para pre­feito. “Na­quele que Deus mandar”, res­pondeu. Es­pantei-me e, con­fesso, com uma ponta de in­veja. Sempre quis saber a von­tade de Deus quanto aos meus passos na vida. Tenho uma fé en­tre­meada de in­cer­tezas.

Sei, porém, que Deus é Pai (e também Mãe, lem­brou o papa João Paulo I), mas não é pa­ter­na­lista. Como reza Gil­berto Gil, deu-me régua e com­passo e, o ca­minho, eu mesmo traço. Isso se chama livre ar­bí­trio.

Aquela se­nhora, en­tre­tanto, dava mos­tras de ter me­re­cido um canal di­reto com Deus. E mais: um Deus cabo elei­toral na acir­rada dis­puta das elei­ções mu­ni­ci­pais.
“Como a se­nhora sa­berá quem é o can­di­dato pre­fe­rido de Deus?”, in­da­guei. Ela re­trucou can­di­da­mente: “O pastor dirá. Ele é a voz de Deus”.
Meu Deus!, reagi in­ti­ma­mente. Con­fundir a função de padre, bispo ou papa, com a von­tade de Deus, é uma das mais aber­rantes ar­ti­ma­nhas para fa­vo­recer o fun­da­men­ta­lismo e sus­citar a ser­vidão vo­lun­tária. Vide o que os ter­ro­ristas is­lâ­micos fazem em nome de Maomé! 

O mais cu­rioso é que nem ateus es­ca­param disso. Basta ler O homem que amava os ca­chorros (Boi­tempo), de Le­o­nardo Pa­dura. Em nome da Causa, en­car­nada na von­tade in­ques­ti­o­nável de Stálin, Ramón Mer­cader sa­cri­ficou a sua vida para as­sas­sinar Trotsky.
Aliás, quase todos os lí­deres, sejam eles po­lí­ticos, re­li­gi­osos ou em­pre­sa­riais, pre­ferem que seus su­bor­di­nados ab­di­quem da cons­ci­ência crí­tica. E ainda que te­nham opi­nião di­fe­rente, tratem de omiti-la. O peixe morre pela boca...

Daí o fenô­meno de­gra­dante da hu­mi­lhação vo­lun­tária. Para não perder pres­tígio, manter a função ou se julgar bem vistos aos olhos do chefe, muitos abaixam a ca­beça e exibem os fun­di­lhos... E qual­quer crí­tica é tida como desvio ide­o­ló­gico, he­resia, cons­pi­ração ou traição.
Volto à canção de Gil. Na es­fera cristã, a régua é a Bí­blia e, o com­passo, a prá­tica de Jesus. Ele atuou em de­fesa dos di­reitos dos po­bres e ex­cluídos. De­nun­ciou os opres­sores e “des­pediu os ricos com as mãos va­zias”. Re­a­lizou a par­tilha dos pães e dos peixes, e “sa­ciou de bens os fa­mintos”.

Todos que se con­si­deram seus dis­cí­pulos, e acre­ditam que ele agia se­gundo a von­tade de Deus, de­ve­riam, por­tanto, agir como ele, in­clu­sive ao votar. Os cri­té­rios evan­gé­licos são ób­vios para quem tem olhos para ver e ore­lhas para ouvir.
O resto é de­ma­gogia e ten­ta­tiva de per­pe­tuar a ser­vidão es­tru­tural da­queles que, fora do mer­cado, não me­recem dig­ni­dade nem sal­vação.

Papel da mídia     
Todo este pro­cesso tem a cum­pli­ci­dade da grande mídia, his­to­ri­ca­mente ali­nhada aos va­lores e po­lí­ticas con­ser­va­dores. De certo modo, pro­gramas de rádio e TV mo­ni­to­rados por pas­tores evan­gé­licos for­ta­lecem a le­gi­ti­mação do status quo, razão pela qual são apoi­ados pelos donos do ca­pital. A estes não in­te­ressa a agenda dos mo­vi­mentos so­ciais nem a am­pli­ação das con­quistas em prol dos di­reitos hu­manos.

Esta pos­tagem de um pastor evan­gé­lico no Fa­ce­book re­flete bem o es­pí­rito de cru­zada de certas Igrejas: "De­vemos nos unir cada vez mais, já somos mi­lhões de evan­gé­licos no Brasil, fora os sim­pa­ti­zantes. Temos força, é claro que nossa força vem de Deus. Pre­ci­samos nos mo­bi­lizar contra as forças das trevas, que querem des­vir­tuar os bons cos­tumes e a moral e, prin­ci­pal­mente que querem afetar a honra da fa­mília. Se o meu povo que se chama pelo meu nome se hu­mi­lhar e orar, não tem ca­peta que re­sista".

O ovo da ser­pente
Em re­sumo: é pre­o­cu­pante a con­fes­si­o­na­li­zação da po­lí­tica. Na eleição de Dilma, o tema re­li­gião ga­nhou mais re­le­vância que pro­gramas de go­verno. Na de pre­feito à ca­pital pau­lista, em 2012, pas­tores e bispos se con­fli­taram, e padre Mar­celo Rossi virou ícone po­lí­tico. E, no Rio, o can­di­dato Cri­vella teve o seu pas­sado fun­da­men­ta­lista de­nun­ciado com base em seus pró­prios es­critos, onde de­mo­niza o ca­to­li­cismo e as re­li­giões de origem afri­cana.

A mo­der­ni­dade se­parou Es­tado e Igreja. Agora o Es­tado é laico. Por­tanto, não pode ser pau­tado por uma de­ter­mi­nada crença re­li­giosa. Todas têm di­reito a di­fundir sua men­sagem e pro­mover ma­ni­fes­ta­ções pú­blicas, desde que res­pei­tados aqueles que não creem ou pensam de modo di­fe­rente.
O Es­tado deve estar a ser­viço de todos os ci­da­dãos, crentes e não crentes, sem se deixar ma­ni­pular por esta Igreja ou aquela de­no­mi­nação re­li­giosa.

O pas­sado do Oci­dente com­prova que mes­clar poder re­li­gioso e poder po­lí­tico é re­forçar o fun­da­men­ta­lismo e, em suas águas turvas, o pre­con­ceito, a dis­cri­mi­nação e, in­clu­sive, a ex­clusão (In­qui­sição, “he­re­sias” etc.). Ainda hoje, no Ori­ente Médio, a so­bre­po­sição de dou­trina re­li­giosa em certos países produz po­lí­ticas obs­cu­ran­tistas.

Temo que também no Brasil es­teja sendo cho­cado o ovo da ser­pente. De­no­mi­na­ções re­li­gi­osas apontam seus pas­tores a cargos ele­tivos; ban­cadas re­li­gi­osas se cons­ti­tuem em casas le­gis­la­tivas; fiéis são mo­bi­li­zados se­gundo o di­a­pasão da luta do bem contra o mal; Igrejas se iden­ti­ficam com par­tidos; am­plos es­paços da mídia são ocu­pados pelo pro­se­li­tismo re­li­gioso.
Algo de pe­ri­goso não es­taria sendo ges­tado? Já não im­porta a luta de classes nem seus con­tornos ide­o­ló­gicos. Já não im­porta a fi­de­li­dade ao pro­grama do par­tido. Im­porta a crença, a fi­de­li­dade a uma de­ter­mi­nada dou­trina ou lí­deres re­li­gi­osos, a “ser­vidão vo­lun­tária” à fé que mo­bi­liza co­ra­ções e mentes.

O que seria de um Brasil cujo Con­gresso Na­ci­onal fosse do­mi­nado por le­gis­la­dores que apro­va­riam leis, não em be­ne­fício do con­junto da po­pu­lação e, sim, para en­qua­drar todos sob a égide de uma dou­trina con­fes­si­onal, te­nham ou não fé nessa dou­trina?

Sa­bemos que ne­nhuma lei pode forçar um ci­dadão a abraçar tal prin­cípio re­li­gioso. Mas a lei pode obrigá-lo a se sub­meter a um pro­ce­di­mento que con­traria a razão e a ci­ência, e só faz sen­tido à luz de um prin­cípio re­li­gioso, como proibir trans­fusão de sangue ou o uso de pre­ser­va­tivo.
Não nos ilu­damos: a his­tória não segue em mo­vi­mento li­near. Por vezes, re­tro­cede. E aquilo que foi ainda será se não lo­grarmos pre­do­minar a con­cepção de que o amor – que não co­nhece bar­reiras e “tudo to­lera”, como diz o após­tolo Paulo – deve sempre pre­va­lecer sobre a fé.

Se nós, ca­tó­licos, pre­ten­demos atrair os po­bres aos nossos tem­plos e co­mu­ni­dades só nos resta um ca­minho: evitar qual­quer com­bate às Igrejas evan­gé­licas, como es­tig­ma­tizá-las com a pecha de “seitas”; di­a­logar ecu­me­ni­ca­mente com seus fiéis e pas­tores; re­criar es­paços pas­to­rais nos quais os po­bres se sintam em casa, como ou­trora nas CEBs e na Pas­toral Ope­rária; adaptar a li­turgia ca­tó­lica aos pa­ra­digmas cul­tu­rais po­pu­lares; e, so­bre­tudo, em nome da fé em Jesus nos co­lo­carmos a ser­viço da er­ra­di­cação da po­breza e de suas causas.

BIB­LI­OGRAFIA
Adorno, Theodor. A tele­visão e os padrões da cul­tura de massa. Org: B. Rosen­berg e D.M. White. São Paulo, Cul­trix, 1973. 
Ass­mann, Hugo. A Igreja eletrônica. Petrópo­lis, Vozes, 1986. 
Bau­man, Zyg­munt. Mod­ernidade e am­bivalência. Rio, Za­har, 1999. 
Beyer, Pe­ter F. A pri­va­tização e a in­fluência pública da re­ligião na so­ciedade global. In: Na­cional­ismo, glob­al­ização e mod­ernidade. Petrópo­lis, Vozes, 1994. 
Bour­dieu, Pierre. So­bre a tele­visão. Rio, Za­har, 1997. 
Cam­pos, Leonildo. Teatro, tem­plo e mer­cado. Or­ga­nização e mar­ket­ing de um em­preendi­mento neopen­te­costal. Petrópo­lis, Vozes, 1997. 
Car­doso, Onésimo. A Igreja Eletrônica. Os pro­gra­mas re­li­giosos na tele­visão brasileira. In: Co­mu­nicação e So­ciedade. Vol. 12, São Paulo, Liber­dade, PP. 5-21, 1987. 
Castells, Manuel. A so­ciedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999. 
De­bord, Guy. A so­ciedade do es­petáculo. Rio, Con­traponto, 1997. 
Gid­dens, An­thony. As con­sequências da mod­ernidade. São Paulo, Un­esp, 1991. 
Ianni, Oc­tavio. Enig­mas da mod­ernidade-mundo. Rio, Civ­i­lização Brasileira, 2000. 
Jame­son, Fredric. Pós-mod­ernismo. A lógica cul­tural do cap­i­tal­ismo tar­dio. São Paulo, Ática, 1996.
Mafra, Clara. Os evangéli­cos. Rio, Za­har, 2001. 
Oro, Ari Pe­dro e Steil, Car­los Al­berto (orgs). Glob­al­ização e re­ligião. Petrópo­lis, Vozes, 1997. 
Re­vista Caros Ami­gos – “O poder das re­ligiões” – Ano XVIII, no. 71, No­vem­bro 2014. 
Sodré, Mu­niz. So­ciedade, mídia e violência. Porto Ale­gre, Sulina e Edipu­crs, 2002. 
Sung, Mo Jung. De­sejo, mer­cado e re­ligião. Petrópo­lis, Vozes, 1998. 
We­ber, Max. A ética protes­tante e o espírito do cap­i­tal­ismo. São Paulo, Pi­o­neira, 1996.

Fonte: Frei Betto - Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, ganhou duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos"). Link: http://www.correiocidadania.com.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário