segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Ministro da Cultura fala sobre exposição “QueerMuseu”, em Porto Alegre, e a performance “La Bête”, em São Paulo

Quando o presidente Michel Temer anunciou o nome de Sérgio Sá Leitão para o Ministério da Cultura, eu respirei aliviado. Pensei: “Enfim uma pessoa capaz, que entende do assunto, que está livre dos preconceitos da esquerdopatia nacional”.
E eu não estava enganado. Eu respirei aliviado. Ele não! Passou a ser alvo do assédio de brucutus de esquerda e de direita, cada um brandindo seu manual de censura.
Nesta quarta, por exemplo, numa audiência pública na Câmara, alguns defensores escrachados da censura, em nome da família e das criancinhas, queriam arrancar do ministro o compromisso de que ele baixaria o porrete em exposições e manifestações artísticas que não respeitassem os “nossos” (DELES!) valores. Assistiu-se a um espetáculo grotesco de agressões, protagonizado, entre outros, por um tal Givaldo Carimbão (PHS-AL), que se diz católico, pelo Delegado Eder Mauro (PSD-PA) — cujo primeiro instinto, tudo indica, é prender quem discorda dele — e por Marco Feliciano (PSC-SP), que fez a defesa aberta da censura.
Não pensem que a esquerda é mais suave. A distorções a que o jornal “O Globo” tem submetido o trabalho do ministro deveriam ser matéria de interesse científico. É igualmente fanática. Os religiosos querem se impor no berro. Os esquerdistas, na base da desqualificação, da fofoca e da desinformação. Cada lado tem a certeza de que o outro não tem legitimidade para opinar…
E, no entanto, Sá Leitão é apenas um homem civilizado, que respeita os valores da democracia e do Estado de Direito. E não! Nem ele nem eu achamos que criancinhas devam conviver com adultos nus sob o argumento de que qualquer restrição que se imponha à arte será necessariamente censura. E não! Nem ele nem eu achamos que as pessoas devam ficar satisfeitas com o que consideram vilipêndio à sua religião. Ocorre que as manifestações e protestos têm de se dar no limite da lei, sem ameaças de morte, por exemplo, não é mesmo, deputado Sóstenes? A propósito: os evangélicos se lembram que já foram considerados hereges um dia — ao menos assim foi com a raiz protestante, de que são derivados? E não! Eu não os estou comparando a artistas pelados…
Leiam a brilhante entrevista de Sá Leitão. Há, sim, uma saída para limitar o acesso de crianças a exposições; é perfeitamente possível respeitar o Estatuto da Criança e do Adolescente (lembrando que a direita, que agora o usa como bíblia, detesta boa parte de seus artigos, não é mesmo?), o Código Penal e a Constituição sem ofender a própria Constituição com a censura, como quer Feliciano, esse moderno pensador da Cultura.
Segue a entrevista.
*
O Sr. anunciou uma nova Instrução Normativa da Lei Rouanet que abre a possibilidade de veto a projetos que “vilipendiem a fé religiosa, promovam a sexualização precoce de crianças e adolescentes e façam apologia a crimes ou a atividades criminosas”?Não. A nova Instrução Normativa da Lei Rouanet encontra-se em processo de elaboração. Não houve qualquer anúncio a respeito. Espero que o trabalho seja concluído até o fim de outubro. Recebi dezenas de documentos com propostas e participei de muitas reuniões para ouvir sugestões. A equipe do MinC está estudando e avaliando todas as contribuições.
Mas o jornal O Globo noticiou recentemente que a nova Instrução Normativa tem um artigo, o 27, com a redação que reproduzi acima. Este artigo 27 existe?
Não. Jamais vi uma versão da nova instrução com esse artigo. E não autorizei a inclusão dele. Não se trata de um documento oficial do MinC. Na versão atual, que se encontra em desenvolvimento, o artigo 27 tem outra redação. Esse texto faz parte de um documento entregue a mim pela Frente Parlamentar Cristã, que está sendo analisado pela equipe.
Por que o Sr. se reuniu com os representantes da Frente Parlamentar Cristã para tratar deste assunto? Há quem queira que isso só deveria ser debatido com o setor cultural e os artistas?
Sou ministro da cultura do Brasil, não de um ou outro setor da sociedade. Devo dialogar com todos. Tenho me reunido com pessoas de todas as áreas, de todas as regiões, de todas as ideologias e de todos os credos. Estou empreendendo um amplo processo de diálogo com a sociedade, incluindo o setor cultural e também os partidos e o restante do governo.
O senhor é a favor da censura a espetáculos, exposições e manifestações artísticas, como dá a entender O Globo?
Claro que não! Sou democrata e liberal. Tenho um firme compromisso com o estado de direito e com a liberdade. A Constituição brasileira estabelece claramente que não há censura no Brasil. E a Lei Rouanet estabelece, no artigo 22, que não há avaliação subjetiva prévia sobre o conteúdo dos projetos apresentados ao MinC. Não vejo razão para se falar em censura.
Mas o senhor não disse ao Globo que vai reproduzir na normatização da Lei Rouanet, “sem uma vírgula a mais ou a menos”, os artigos do Código Penal que constam da proposta da Frente Parlamentar Cristã?
Não. O que disse ao Globo, e já falei em dezenas de reuniões e eventos públicos, é que a nova Instrução Normativa não terá uma vírgula a mais ou a menos do que estabelecem a Constituição e a própria Lei Rouanet. Uma IN não pode extrapolar a Carta Magna nem a lei que procura regulamentar. Há no Brasil a tradição de se legislar por meio de normatização infralegal. Não farei isso.
Como o Sr. vê a controvérsia em torno da exposição “QueerMuseu”, em Porto Alegre, e a performance “La Bête”, em São Paulo?Em momentos de polêmica e de polarização, é fundamental recorrer ao denominador comum da sociedade, que é o estado de direito. A Constituição assegura a liberdade de criação, de expressão e de manifestação. Também preconiza a proteção das crianças e dos adolescentes e o respeito às religiões. Não creio que sejam princípios incompatíveis. Ao contrário.
Como fazer isso na prática?Por meio da classificação indicativa e do aviso prévio sobre o conteúdo apresentado. Como já existe no cinema, na TV e nos games. Conversei com diretores de museus e centros culturais, e muitos são favoráveis. Preparei uma minuta de projeto de lei e entreguei ao presidente Michel Temer. Temos que assegurar a liberdade artística e zelar pela integridade das crianças.
O senhor avalia que houve crime na exposição e na performance?Cabe à Justiça se pronunciar. Ninguém está acima da lei. Trata-se de uma conquista democrática. Há a Constituição, o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Precisamos entender que a vida em sociedade pressupõe regras, deveres e responsabilidades, além de direitos e garantias. A ideia de que não há limites é infantil.
Mas houve ou não houve crime?
No que diz respeito ao MinC, os projetos cumpriram o exigido pela Lei Rouanet. Por isso receberam recursos incentivados. Ainda vamos analisar as prestações de contas. Penso que a origem da controvérsia está na presença de crianças na exposição e na performance. Daí a necessidade de estabelecer a classificação indicativa, com adequação de faixa etária.
O jornal O Globo chegou a falar em editorial que “a censura a manifestações artísticas tem sido crescente, moldada em predileções confessionais e ideológicas de agentes públicos”. O senhor concorda?Os cidadãos e cidadãs têm o direito de escolher se querem ou não ver um evento cultural; de decidir o que seus filhos podem ou não ver; e inclusive de protestar e boicotar, desde que dentro da lei. As instituições culturais privadas, por sua vez, têm o direito de deliberar sobre sua programação. O que não pode haver é censura estatal. Nem dirigismo cultural.
Por que O Globo associou o senhor a esse suposto movimento de censura estatal a projetos culturais?Não faço ideia. Considero absolutamente injusto. E ofensivo. Não há base na realidade. O tal artigo 27 não existe. Estou muito chateado com isso. Sei bem o que é a censura. Fui processado com base na Lei de Segurança Nacional por exibir, em 1985, o filme “Je Vous Salue Marie”, que havia sido proibido pela Censura Federal. Não há censura no MinC.
Por que o Sr. tomou a iniciativa de revisar a Instrução Normativa da Lei Rouanet?
Trata-se de uma demanda do setor cultural e dos patrocinadores. A Instrução Normativa atual tem mais de três vezes o número de artigos da lei que regulamenta. Ela burocratizou a Lei Rouanet, inibindo a apresentação de projetos e a captação de recursos. Precisamos ampliar o acesso, racionalizar a gestão e melhorar os resultados, com mais eficiência e mais eficácia.
Há um forte movimento contra a Lei Rouanet, acusada de favorecer artistas de esquerda e de desperdiçar recursos públicos. Como o senhor avalia essas críticas?
Sejamos justos. A Lei Rouanet tem uma longa folha de bons serviços prestados ao país e à cultura. Os problemas apontados dizem respeito a poucos projetos. Houve negligência na gestão. Estamos resolvendo. Muitos projetos de grande qualidade e de vasto alcance aconteceram devido à Lei Rouanet. É preciso melhorá-la, claro. Mas preservando-a.
Não há favorecimento e dirigismo?
Não. Trata-se de um mecanismo inteligente, de decisão compartilhada, em que o governo habilita tecnicamente e fiscaliza a execução e as contas dos projetos; e empresas e pessoas escolhem, entre os milhares de projetos habilitados, os que vão apoiar. No momento do apoio, os recursos são privados; depois, os valores podem ser descontados do imposto de renda.
Pouca gente sabe como efetivamente funciona a Lei Rouanet. Não seria o caso de explicar melhor e de mostrar os resultados?
Concordo. Estamos estudando a melhor maneira de fazer isso O fato é que em quase todos os países do mundo, incluindo os Estados Unidos, há mecanismos governamentais de fomento à cultura e de estímulo ao investimento privado no setor, seja com aporte direto de recursos orçamentários, seja com incentivos fiscais. A Lei Rouanet é um dos melhores.
Há quem pregue o fim da Lei Rouanet e veja isso como uma panaceia capaz de resolver todos os problemas do país. Faz sentido?Não. O incentivo fiscal para a cultura, somando a Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual, chega a apenas 0,64% do total da renúncia fiscal em nível federal. É vital para a cultura e ínfimo para o governo. As atividades culturais respondem por 2,6% do PIB, um milhão de empregos diretos e 200 mil empresas e instituições. A cultura dá ao governo e ao país mais do que recebe.
Fonte: Reinaldo Azevedo. Endereço: http://www3.redetv.uol.com.br/blog/reinaldo/

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