terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Escola Sem Partido em debate

O projeto, que limita a liberdade do professor na sala de aula e veta abordagens sobre temas de gênero e sexualidade, tramita no Congresso. Bolsonaro é favorável à proposta e descreve a suposta doutrinação política como um dos grandes problemas da educação. Segundo especialistas, essa visão coloca em jogo o modelo de escola que o país deveria adotar.
Movimento inspirou uma série de projetos de lei municipais, estaduais e federal, mas foi contestado pela AGU, MPF e associações de professores.

Em apenas um dos estados um projeto semelhante já foi aprovado. Trata-se da lei que institui o programa “Escola Livre” em Alagoas (no mapa, em azul), aprovado em abril. Nessa época, em entrevista ao G1 por e-mail, o advogado Miguel Nagib, idealizador do movimento “Escola sem Partido”, ressaltou que o projeto defendido por seu grupo “não corresponde exatamente ao que foi aprovado em Alagoas”.

Segundo Nagib, o projeto defendido pelo “Escola sem Partido” consiste apenas em afixar nas escolas um cartaz com uma lista de “deveres do professor”. O advogado afirma que “esses deveres já existem” e que o objetivo é “apenas levá-los ao conhecimento dos alunos, para que eles mesmos possam se defender contra eventuais abusos praticados por seus professores, já que, dentro da sala de aula, ninguém mais poderá fazer isso por eles. Em três estados, o projeto já foi arquivado.

Ensinar a pensar de forma crítica é um dos principais papeis da escola. Fazer a cabeça do estudante, ao contrário, é doutrinação inescrupulosa. Mas será mesmo necessário fazer uma lei sobre “Escola Sem Partido” para estabelecer tais limites?

O movimento Escola sem Partido parte do princípio - legítimo - de que o professor não pode ser aproveitar da audiência cativa dos alunos para promover as suas concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

Se aprovada a lei que o movimento defende, o professor não poderá favorecer, prejudicar nem constranger os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas. Quando abordar questões políticas, socioculturais e econômicas, terá que apresentar aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias e perspectivas concorrentes a respeito.

Ora, todo professor com a devida ética profissional faz isso. E se ele, ao contrário, abusa da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos para “fazer a sua cabeça”, ou prejudica os alunos por causa das suas convicções, está desvirtuando o processo educacional, que deve incentivar a autonomia intelectual, a reflexão crítica e a capacidade de fazer suas próprias escolhas. É isso o que a educação de hoje requer: formação para a autonomia intelectual.

Quando um professor age sem a ética necessária ao exercício da profissão, cabe ao coordenador pedagógico e ao diretor da escola cuidar do assunto, eventualmente inclusive com punições. Os pais e os próprios estudantes devem ficar atentos para alertar a escola sobre abusos e desvios da função docente.

O mesmo se pode afirmar sobre os livros didáticos. Cabe ao MEC e a cada professor avaliar se um livro didático apresenta cada tema de forma adequada, para contribuir para a visão global e a formação integral do estudante, ou se ele é tendencioso, ofensivo ou tem viés partidário. Nesse caso, o livro jamais deveria ser adotado.

Preocupam, nesta discussão, as interpretações radicais, que podem derivar no patrulhamento ideológico. Podemos imaginar um sem número de situações absurdas: por exemplo, famílias processando escola e professor porque este mencionou determinado pensador, ou porque não deu o mesmo tempo de aula sobre o pensador “concorrente”, ou porque a prova trazia questões sobre determinada linha político-econômica, e assim por diante. Ou, ainda, escolas que abolissem de sua didática os debates ou as leituras mais provocadoras.

Doutrinação nunca; ensinar a pensar, sempre. Isso se faz com leituras, filmes, debates, dinâmicas de interação, oportunidades para que o estudante exponha seus argumentos e aprenda com as visões de todos os outros.

Acreditar que existe educação “neutra” é ingenuidade. Mas é possível, sim, abordar os mais diversos temas e autores de forma instigante e, ao mesmo tempo, respeitosa da autonomia do estudante, estimulando-o a fazer uma leitura crítica da realidade e, com liberdade e consciência, se posicionar como cidadão. Professores com ética e bom senso fazem isso todos os dias.


O projeto de lei do Senado nº 193 de 2016 de autoria do senador pelo Espírito Santo, Magno Malta, do partido PR, e evangélico, tem gerado polêmica. Por quê?
Segundo consulta pública divulgada no site do Senado, as opiniões se dividem, mas estão equilibradas, com ligeira vantagem para os que são contra o Projeto de Lei.

Toda escola é em princípio sem partido, como reza a Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Base da Educação de 1996. Então, por que o senador evangélico quer uma escola sem partido?

As escolas onde estudam 75% das crianças e jovens brasileiros são sempre muito criticadas por não ensinarem, por deixarem os jovens chegarem ao final do ensino médio sem saber nem ler nem escrever, por não se preocuparem com o destino de seus alunos. Então por que agora uma lei para que a escola não tenha partido, não seja ideológica? Se a escola não ensina, não ensina também ideologia alguma.
Então por que a polêmica e qual o sentido de uma lei que não atingirá a sala de aula?

O senador elaborou o projeto num momento de extrema radicalização das ideias. Momento em que a política entrou pela porta da frente de todas as casas. Nestes últimos meses, a maioria dos brasileiros passou horas diante da TV vendo os nossos representantes se digladiando sobre temas cruciais. É impossível que esse clima não esteja presente na escola.

Ao levantar a questão, o senador está apontando para um grave e sério problema. Quem pode “fazer a cabeça” de crianças e jovens a ponto de impedi-las de pensar por si mesmas? Será mesmo o professor? Tivemos exemplos disso na história recente do mundo e do Brasil, quando livros eram queimados e professores proibidos de ensinar certos assuntos. Mas estamos nesse momento?

Penso que o debate só surgiu agora porque há uma questão séria ocorrendo nas escolas. Especialmente em estados em que o ensino religioso é confessional, como no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, estado do Senador que elaborou o projeto de lei. Como ensinar biologia ou genética para estudantes religiosos que acreditam no criacionismo? Alguns alunos se recusam a assistir às aulas de biologia devido à crença difundida entre os religiosos de que deus fez o mundo.

O senador quer proteger os estudantes e professores religiosos impedindo que os outros professores critiquem sua crença e exponham outras crenças. Escola sem Partido é um projeto que toca no debate entre laicidade, ideologia e religião nas escolas.

Será mesmo que uma lei irá amenizar os confrontos ideológicos e religiosos nas escolas? E finalmente será essa a questão que influencia o bom ou mau desempenho dos estudantes? Acredito que não. O problema central do ensino, em grande parte das escolas brasileiras, onde estudam 75% da população, é o fato de que a maioria dos professores simplesmente não ensina nem a ler, nem a escrever, nem a fazer conta, como diria Darcy Ribeiro. Menos ainda ideologia e religião.

Certas ideias infiltram-se no debate público cheias de lógica, apenas para fracassar mais adiante, por total inviabilidade. E esse percurso não é neutro, costuma lançar na coluna de perdedor quem nelas investiu capital político. Foi assim com o “controle social da mídia” proposto pelo PT. Pinta ser assim com o Escola Sem Partido anabolizado pelo bolsonarismo.
O PT passou década e meia no governo falando no “controle social da mídia”, e colheu só desgaste. Não conseguiu implantar qualquer tipo de controle, mas deu gás às teses de que o objetivo último do partido é acabar com a liberdade de imprensa, como praticada em países como o nosso. Não foi só por isso, claro, mas também por isso deu no que deu.
O Escola Sem Partido ensaia ser para o bolsonarismo um ponto focal de organização política e intelectual dos adversários, que agora terão a vantagem de desfraldar a bandeira da liberdade. Uma vantagem e tanto. Outra notícia boa para a oposição: ao contrário do PT e seu “controle social da mídia”, talvez haja votos para passar a coisa no Congresso Nacional.

Pois o desgaste que o novo governo vai colher com o debate parlamentar do Escola Sem Partido nem se compara à corrosão que sofrerá com as tentativas de implantar na vida real, se virar lei. Em 1º lugar, por oferecer ao STF a oportunidade de manifestar mais uma vez seu poder, e agora como guardião das liberdades e garantias fundamentais da Constituição.
Mas não só. Melhor ainda será, para a oposição, se o STF deixar passar. Aí a guerra se espalhará pelas escolas e universidades, e assim ganhará amplo espaço na imprensa. E vai ser uma guerra perpétua, pois, como no “controle social da mídia” do petismo, inexiste em projetos como o Escola Sem Partido qualquer possibilidade de adotar parâmetros objetivos.
Como medir a “doutrinação” aceitável na difusão das ideias? Boa sorte a quem tentar descobrir. Um monarquista empedernido se revoltará contra a tese de as revoluções francesa e americana terem sido saltos adiante no processo civilizatório. Um socialista clássico se rebelará contra a tentativa de enquadrar o socialismo na categoria de “totalitarismo”. E então?
E quando o debate passa a ser sobre religião? Uma escola vinculada a determinada crença tem todo o direito de dizer aos alunos que o critério de certo e errado, de verdade e mentira, foi estabelecido pelos textos sagrados dela. E também de informar que dúvidas sobre a atualidade das regras devem ser dirimidas com representantes da respectiva hierarquia religiosa.
Mas se, por exemplo, escolas católicas devem poder ensinar aos alunos que Jesus Cristo foi o Messias, as judaicas também devem poder contestar que não. E as de fé islâmica devem ter toda a liberdade de defender que Jesus foi apenas um profeta, e não filho de Deus, ou Deus. E se os pais não concordarem? Ou explicam em casa que não é bem assim ou trocam de escola.
“E nas escolas públicas?” Bem, aí só há duas possibilidades: 1) ou cada professor tem liberdade para ensinar ou 2) estabelece-se uma ideologia oficial. São os 2 sistemas conhecidos. Toda tentativa de achar um 3º fracassou. O Escola Sem Partido só seria viável no 2º. E seria um desafio brabo num planeta digitalizado e interconectado em tempo real.
Radicalizar na agenda dita “comportamental” vai ser tentação, na impossibilidade de apresentar resultados econômicos instantâneos. Será uma maneira de manter coesa e energizada a base social do bolsonarismo, pois talvez as circunstâncias da economia obriguem a recuos nas agendas da política externa e ambiental. Mas também vai ser oxigênio para a oposição.
Assim será com o Escola Sem Partido. Se o governo for esperto, dá um jeito de dizer que está fazendo e ao mesmo tempo desidrata a coisa até a irrelevância. Deixa pra lá. Mas talvez falte ao ideologicamente coeso governo bolsonarista, todo imbuído do sentido de missão, o passarinho na gaiola na mina de carvão. O que quando morre dá o sinal de perigo.

  
Alon Feuerwerker, 63 anos, é jornalista e analista político e de comunicação na FSB Comunicação. Militou no movimento estudantil contra a ditadura militar nos anos 1970 e 1980. Já assessorou políticos do PT, PSDB, PC do B e PSB, entre outros. De 2006 a 2011 fez o Blog do Alon. Desde 2016, publica análises de conjuntura no blog alon.jor.br. Escreve para o Poder360 semanalmente, às quintas-feiras e aos domingos.


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