Apóstolo Paulo escrevendo cartas. (Foto: Reprodução)
Alguns estudiosos pentecostais têm
denunciado o que seria uma “paulinização” da teologia sistemática tradicional,
termo por meio do qual querem designar a construção de conceitos teológicos
orientados predominantemente pela linguagem das Epístolas de Paulo, em
detrimento dos demais escritos neotestamentários (especialmente o Evangelho de
Lucas e Atos dos Apóstolos).
Afirmam esses
estudiosos que uma suposta superestimação da teologia paulina teria alijado da
pneumatologia protestante a dimensão vocacional do Espírito
Santo, com seus aspectos carismático e missiológico, paralelamente a uma
valorização demasiada da dimensão soteriológica.
Esgrime-se o argumento principalmente
contra a teologia calvinista-reformada, porque assim tais especialistas pensam
reunir conceitos mais adequados à defesa de uma genuína teologia pentecostal.
No entanto, em sua tentativa de erigir
uma perspectiva teológica pentecostal assentada em fundamentos não paulinos,
esses autores, imergindo no que entendem ser uma “teologia lucana”, se submetem
ao risco de recorrer a instrumentos exegéticos pouco recomendáveis, os quais
devem ser avaliados com redobrada atenção, não apenas pela teologia reformada,
mas também pela teologia pentecostal – enfim, pela teologia cristã protestante
e evangélica e por todos aqueles que adotam o método histórico-gramatical de interpretação
das Escrituras.
Neste ensaio,
utilizarei o exemplo emblemático do teólogo canadense Roger Stronstad, tomando
como referência seu livro Teologia lucana sob exame: experiências
e modelos paradigmáticos em Lucas-Atos, publicado no Brasil pela Editora
Carisma (dados bibliográficos indicados ao final).
Stronstad forma com Robert P. Menzies e
Craig S. Keener um trio atualmente muito prestigiado por estudantes de teologia
pentecostal, aos quais se associam nomes como Ian Howard Marshall, French
Arrington e Amos Yong, entre outros.
Na mencionada obra,
Roger Stronstad tem por objetivo demonstrar que Lucas-Atos, visto por ele como
obra única em dois volumes, apresenta a Igreja como uma comunidade de
profetas batizados, ungidos, “empoderados”, guiados e preenchidos pelo Espírito
Santo (pp. 14, 15, 17, 20, 23-27, 192, 205, 207, 208, por exemplo).
O autor aponta para
Lucas como “um narrador (…) extremamente habilidoso” (p. 23), que, por meio de
uma “estratégia narrativa” caracterizada por episódios programáticos, inclusões e paralelismos (pp. 21-28),
oferece elementos desse caráter profético nos cuidadosos relatos sobre Jesus,
sobre a comunidade cristã primitiva e sobre seis “profetas carismáticos”
(Estêvão, Filipe, Barnabé, Ágabo, Pedro e Paulo).
É positivo o empenho de Stronstad em
analisar as ênfases teológicas de Lucas e Atos, assim como a sua valorização da
qualidade literária do texto lucano; são também dignos de registro o seu
trabalho intelectual, a sua dedicação a uma teologia bíblica dirigida ao
público pentecostal-carismático e a maneira como organiza a obra, que se
reveste de interesse acadêmico.
Entretanto, há na
proposta teológica de Stronstad aspectos problemáticos, e o principal deles
reside na tentativa de construir uma independência entre as
pneumatologias lucana e paulina, tudo sob o manto de uma crítica redacional.
Com efeito, logo no
início da obra, Stronstad afirma que, “apesar de haver amplo consenso no meio
acadêmico de que cada autor bíblico seja interpretado em seu próprio direito e
em seus próprios termos, ainda é normal ler Lucas através das lentes paulinas” (p. 15; destaque
acrescido). No mesmo parágrafo, o autor rechaça o entendimento de que a
pneumatologia de Lucas estaria “essencialmente ligada à pneumatologia de Paulo”
(p. 15).
Para não deixar
dúvidas de que enxerga autonomia na teologia lucana, o autor dá um passo à
frente e declara: “Tenho interpretado Lucas-Atos independentemente de outros
evangelhos e epístolas” (p. 15; destaque acrescido); diz que evitou interpretar
Lucas como se ele fosse Mateus ou Paulo (idem); e observa que “Lucas, contrapondo-se a João ou
Paulo, jamais relata explicitamente que o Espírito Santo efetua a salvação” (p.
16; destaque acrescido).
Se as palavras ainda
guardam sentido, precisamos reconhecer o peso do advérbio “independentemente” e
do verbo “contrapor-se”, pois se trata de termos empregados por Stronstad para
identificar o cerne de sua proposta teológica. O mesmo se deve dizer quanto ao uso
da expressão “lentes de Paulo”, assim como da afirmação de que a pneumatologia
lucana não está “essencialmente ligada” à
pneumatologia paulina (destaque acrescido).
Mais algumas
informações serão úteis para uma apreciação do método exegético escolhido por
Stronstad. Por exemplo, apesar de atento a quantidades, o autor subestima a
extensa porção que Atos dedica ao ministério de Paulo, e chega a afirmar o
seguinte:
1. que Lucas apresenta
Paulo, não tanto como apóstolo, mas sobretudo como “profeta carismático”, ao
lado de Pedro, Estêvão, Filipe, Barnabé e Ágabo, e uma das razões dessa “recusa
determinada” estaria no fato de Paulo não atender aos “critérios históricos
para o apostolado” (pp. 151, 152);
2. que Lucas relata a
experiência carismática de Paulo conforme experiência de Pedro, o que seria
comprovado pelos recursos da estratégia narrativa lucana (pp. 27, 196-198, 200,
201);
3. que, para Lucas, o
“primeiro e maior herói da comunidade carismática de Lucas” não é Paulo, mas
Pedro (p. 196), mesmo afirmando, pouco depois, que Lucas deliberadamente
constrói sua narrativa de tal modo a equilibrar os
ministérios de Paulo e Pedro, com o objetivo de evitar hostilidades entre os
grupos cristãos formados por gentios e judeus (pp. 200, 201).
As assertivas de
Stronstad, consideradas
em conjunto, causam estranheza, pelas seguintes razões:
(1) Lucas, conquanto
evangelista, teólogo e historiador inspirado pelo Espírito Santo, em nenhum
momento se apresenta numa condição de quem estabelece doutrina
independentemente dos apóstolos, pois o que escreve resulta de seu esforço de
pesquisa junto aos que foram testemunhas presenciais e ministros da Palavra
(cf. Lc 1.1-4; At 1.1-4) – a doutrina da Igreja
Primitiva era a “doutrina dos apóstolos”, e esta compunha o objeto de estudo de
Lucas (cf. At 2.42);
(2) Lucas acompanhou
o ministério do apóstolo Paulo, sendo este o líder da equipe missionária
(cf. At 16.10-17; 20.5,6,
13-16; 21.1-18; 27.1-44; 28.2-16; Cl 4.14; II Tm 4.11);
(3) Atos dos
Apóstolos ocupa-se, em sua maior parte, da conversão e ministério de Paulo
(cf. At 9.1-31; 13-28;
cf., ainda, 7.58 e 8.1);
(4) pelo menos sete
discursos de Paulo são relatados em Atos dos Apóstolos, o que, no mínimo, aproxima a teologia
lucana da teologia paulina (cf. At 13.16-41;
17.22-31; 20.18-35; 22.1-21; 24.10-21; 26.1-29; 28.17-20, 25-28);
(5) é plenamente
comprovado, portanto, que Lucas aprendeu teologia com
Paulo – a esse respeito, alguns objetam com a afirmação de que I Tm 5.18 conteria
uma citação de Lc 10.7, mas (a) não
se pode provar, por causa disso, que Paulo estivesse citando Lucas, já que a
frase também se acha em Mateus, e (b) é provável que Paulo estivesse citando um
provérbio muito conhecido da época, o qual foi dito por Jesus para reforçar o
princípio de Dt 25.4 (cf. Mt 10.10; Lc 10.7; I Co 9.9),
declaração esta a que Paulo se refere como sendo ordem “do Senhor” (cf. I Co 9.14);
(6) Stronstad parece modelar sua
avaliação da obra de Lucas sem considerar evidências internas, porque “precisa”
comprovar a hipótese de que o propósito teológico de Lucas como redator/editor
seria apresentar o nascimento de uma comunidade de profetas ungidos, na qual
uma figura como Paulo surge como “profeta carismático” ladeado por outros
tantos.
Admiradores da
perspectiva de Stronstad costumam alegar que não se trata de contradição entre Lucas e
Paulo, mas, sim, de ênfases distintas. Não é simplesmente isto, porém, o que
Stronstad defende, pois suas premissas e seu emprego da crítica redacional
projetam em Lucas a imagem de um redator responsável pela elaboração de um
documento engendrado a partir de conceitos teológicos criados de maneira
independente, os quais estariam esquecidos sob a penumbra de uma “paulinização”
protestante da teologia.
Em tese, não haveria
dificuldade em aceitar que obras de autores distintos se complementassem a
partir de respectivas ênfases autônomas, mas o ponto central aqui defendido é que
isto não se verifica substancialmente na relação entre Lucas-Atos e as Epístolas
Paulinas. O cerne do problema, desse modo, não é simplesmente lógico, mas
factual.
É estranho que alguma
perspectiva pentecostal necessite se afastar assim da teologia paulina, pois o
próprio Paulo fornece elementos robustos para a pneumatologia pentecostal: quem
ora pelos discípulos de Éfeso, para que recebam o batismo no Espírito Santo,
não é Lucas, mas Paulo (cf. At 19.1-7); não é Lucas quem
escreve I Co 12 a 14,
mas Paulo; não é Lucas quem escreve aos coríntios sobre sua pregação com
“demonstração do Espírito e de poder”, mas Paulo (cf. I Co 2.4); não é
Lucas quem, dirigindo-se aos “insensatos gálatas”, associa o recebimento do
Espírito e a concessão do Espírito à operação de maravilhas, mas Paulo
(cf. Gl 3.2, 5);
novamente, não é Lucas, mas Paulo, quem escreve aos tessalonicenses sobre o
poder do Espírito, exortando-os, ainda, a que não desprezassem as profecias
(cf. I
Ts 1.5, 6; 5.19, 20).
Se alguém, para defender a teologia
pentecostal, precisa alterar a exegese pentecostal tradicional sobre Lucas e
Atos e, além disso, classificar a pneumatologia paulina como exclusivamente
soteriológica, surgem importante questões:
·
esses teólogos não conseguem ver a teologia paulina como fonte de
teologia pentecostal-carismática?
·
em Lucas e Atos eles não veem teologia de João Batista, do Senhor Jesus
Cristo, de Mateus, de Marcos, de Paulo, de Pedro, de Estêvão…?
·
a começar da promessa do batismo no Espírito Santo ou revestimento de
poder pela descida do Espírito Santo (cf. Mt 3.11,12; Mc 1.8; Lc 3.16; 24.49; Jo 1.33; At 1.4-8), o que Lucas estava a fazer, senão um
registro do que ouvira das testemunhas oculares e “ministros da Palavra”, os
“apóstolos que [Jesus] escolhera (cf. Lc 1.2 e At 1.2)?
Curiosamente, o mesmo
Stronstad que destaca a narrativa de Lucas-Atos como “história seletiva” (pp.
31-34), destinada a veicular proposições teológicas extraídas de um cenário
muito maior, deixa de considerar o caráter responsivo das Epístolas
de Paulo, o que deve ser identificado como uma omissão teológica relevante,
porque as ênfases dadas por Paulo em suas Epístolas não significam que sua
pneumatologia seja exclusivamente soteriológica, mas, sim, que era necessário
dar destaque à doutrina da salvação, como ocorre em Romanos, Gálatas e Efésios.
Lucas e Atos são
considerados justificadamente como obras de grande interesse espiritual, mas
não por alguma independência, autonomia ou contraposição, e, sim, por seu conteúdo identificado com a doutrina
dos apóstolos, que o médico Lucas teve condições de aprender … pelas lentes de Paulo
e de outros personagens da Igreja.
Por fim, se determinados autores
(cessacionistas ou não) interpretam erroneamente os escritos lucanos, isto não
se deve às “lentes paulinas”, mas às lentes do intérprete. O próprio Lucas
utilizou as lentes paulinas, e seria bom e agradável que assim todos
fizéssemos.
Notas:
·
Referência bibliográfica da obra em comento: STRONSTAD, Roger:
experiências e modelos paradigmáticos em Lucas-Atos; tradução de Celso Roberto;
revisão de Eliana Moura e Joelson Gomes. – Natal, RN: Carisma, 2018, 240p.
·
Sobre I Tm 5.18, o leitor
pode consultar o Novo Comentário da Bíblia (São
Paulo: Edições Vida Nova, 1963, Volume II, p. 1321) e o Comentário Bíblico Pentecostal (Rio de Janeiro,
CPAD), na seção em que Deborah Menken Gill tece considerações sobre a Primeira
Epístola de Paulo a Timóteo.
·
Para uma consideração bíblica do tema da “paulinização” da teologia,
sugiro ao prezado leitor o exame do texto Teologia pentecostal: paulina
ou lucana?”, publicado em 13 de setembro de 2019 no blog de Ciro
Sanches Zibordi, teólogo assembleiano e renomado escritor da CPAD, além de
trechos do seu livro Barnabé: o pregador de fé e
obras, recém-lançado pela mesma editora (2019, especialmente a seção
às pp. 58, 59).
Fonte: Texto perfeito do Alex
Esteves. Falou o que eu tinha vontade de falar.
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