A atmosfera já mudou: o crescimento das Redes Carismáticas Independentes
O culto cristão na pós-modernidade: parte 1 — Introdução
Lembro-me de quando entrei pela porta da igreja, e me deparei com as cores escuras do templo: tons de azul, roxo, e as paredes negras. Esperei que iluminassem o templo para que eu pudesse ler um pouco a Bíblia antes do culto, mas, para frustração de minhas expectativas, as luzes roxas tomaram o lugar da tradicional luz branca. Sendo assim, comecei a ler alguns textos para a escola dominical no celular, enquanto esperava a pessoa que me convidou aparecer na igreja para que pudéssemos estar lado a lado no culto: parecia ser um tradicional culto jovem de sábado.
Chegada minha companhia para o culto, comecei a encher-lhe de perguntas: estava perdido com tantas músicas que não conhecia, mas que pareciam iguais, uma ênfase constante nos sentidos (fome, sede, abraços, visões, sussurros…), músicas com refrãos repetidos ad aeternum, aquele contingente de meninas dançando com pedaços enormes de tecido, inúmeros flashes de luz roxa e as repetidas menções a termos como mudar atmosfera, destino, profético, sobrenatural, autenticidade e afins, tudo isso feito por líderes jovens uniformizados na última moda do streetwear. A resposta que tive foi que aquilo era “uma libertação da religiosidade” que chamavam de adoração espontânea, e que alguns apelidaram, mais tarde, de chapação — componentes de um amplo movimento em favor da adoração profética. Foi assim que, há poucos anos, conheci a adoração profética, e depois de passar por mais alguns cultos por aí, percebi que a coisa passou a ser um padrão (se não nas igrejas, pelo menos nos cultos jovens).
Você provavelmente conhece alguma igreja assim. Talvez até frequente uma. Mas se o surgimento de novos segmentos não são novidade entre evangélicos, porque deveríamos nos preocupar com a adoração profética?
Por que falar disso agora?
Cosmovisão é uma palavra que definitivamente virou moda nos arraiais evangélicos. Uma frase que resumiria a tendência recente de usar o conceito é conhecida por muitos: você enxerga o mundo pelos óculos da sua cosmovisão. Embora haja bastante confusão em saber a autoria da frase (já foi atribuída a João Calvino, John Frame,
, até Agostinho…) sua intenção é anunciar que não somos neutros, isto é, estamos sempre usando conceitos para entender o mundo ao nosso redor, sejamos conscientes disso ou não.Ao conversar com amigos sobre o tema da adoração profética, percebi o quanto o assunto parecia, de certo modo, familiar. Afinal, existe bastante material falando sobre a questão da dança e do teatro no culto, sobre desaprovação ao sentimentalismo das igrejas contemporâneas, e críticas ao modelo da mega-igreja. Minha intenção não é fazer uma lista exaustiva desses materiais, mas gostaria de citar os que mais me marcaram: um vídeo famoso do Augustus Nicodemus sobre dança, um vídeo recente do Yago Martins sobre o sentimentalismo no culto, e um podcast do Lado a Lado sobre igreja e pós-modernidade.
A questão é que ao ter contato com esse tipo de material, percebi que eram limitados. Neste caso, não entenda “limitação” como “falta de qualidade”. Sendo materiais de introdução ou estudos mais aprofundados, são, em geral, estudos de ótima qualidade. O que quero dizer é que a diferença entre o presente estudo e aqueles é o grau, e não a qualidade.
Já que falamos de grau, voltemos à analogia dos “óculos da cosmovisão”. Percebo que, em geral, essas pesquisas falam sobre como uma pessoa vê o mundo com os óculos da igreja atual. Minha intenção é entender como esses óculos foram fabricados, que material usaram, e como desenharam o modelo. Parte dos estudos que vi são limitados porque tinham um objetivo diferente do proposto para este texto, e é natural que seja desse jeito. Assim, procuro somar àquilo que já foi dito sobre o assunto, uma vez que dependi destes materiais para começar essa pesquisa.
Tendo dito isto, tento esclarecer outro ponto: visto que a maior parte do que já foi feito sobre adoração é de teor exegético, este texto não terá essa intenção. Não só pela quantidade de material produzido com essa abordagem, mas porque existem muitas outras pessoas mais capacitadas para interpretar os textos originais da Bíblia que eu. É claro que, na medida do possível, tentarei apresentar como os movimentos de adoração que citarei ao longo desta série interpretaram textos bíblicos centrais para seus argumentos, mas não é minha intenção refutá-los exegeticamente. Nesse caso, recomendo que você faça como eu ao ler esses materiais: abra sua Bíblia, ao lado de um bom comentário bíblico e um bom dicionário de grego e hebraico; e leia, ore, e medite sobre os argumentos apresentados acerca da interpretação correta dos textos.
Há outro motivo pelo qual não escolhi a abordagem exegética. Exatamente por sua preocupação com a interpretação correta dos textos bíblicos em seu contexto histórico e sua aplicação hoje, acaba-se ocupando grande parte do esforço que seria necessário em tentar perceber as mudanças do nosso próprio contexto. Por exemplo: cresci frequentando a Assembleia de Deus, e, quando o tema da adoração profética era mencionado, se queria dizer que existiam pessoas que acreditavam intensificar seu relacionamento com Deus por meio de referências à cultura judaica no culto. Bandeiras de Israel, candelabros, “cortinas do templo” e arcas da aliança decoravam as igrejas, pastores e líderes de louvor usavam recorrentemente palavras do hebraico no culto, e mesmo a música tentava reproduzir algo que soasse como Oriente Próximo. Contudo, por mais que se possa argumentar que essa definição do início dos anos 2000 tenha influenciado o que é adoração profética hoje, o movimento que é alvo deste estudo tem outra origem e outras pretensões, por mais que use as mesmas palavras do movimento da década passada para definir-se. E porque os tempos mudam, é preciso evitar o risco de não perceber que nossa análise do estado da igreja não comunique com a real situação da igreja na atualidade. É como medicar um paciente com analgésicos quando seu quadro já piorou faz tempo.
E qual é o estado em que a igreja se encontra hoje? Bem, alguns diriam que o Pentecostalismo vai muito bem, obrigado. Enquanto outras correntes mais tradicionais do Protestantismo perdem seus membros em ritmo crescente, igrejas ligadas ao Pentecostalismo tem um crescimento aproximado de 9% ao ano no mundo todo¹ (só na América Latina, 65% da população evangélica se identifica como pentecostal²). Entretanto, se aumentarmos o zoom do nosso microscópio sobre a amostra do Pentecostalismo, perceberemos que a situação é mais complicada. Debaixo do guarda-chuva pentecostal (também chamado de movimentos de renovação), existem três grupos: (1) fiéis ligados a denominações pentecostais tradicionais, (2) fiéis ligados a denominações “tradicionais renovadas”, e (3) fiéis ligados a um novo tipo de igreja: as “carismáticas independentes”. Destes 3 tipos, os pentecostais tradicionais e os tradicionais renovados têm crescimento estagnado em aproximadamente 2% ao ano³, enquanto os carismáticos independentes crescem em torno de 3,6% mundialmente⁴.
As igrejas carismáticas independentes não apenas representam uma nova faceta da história do Pentecostalismo, mas do cristianismo como um todo. Ao lado de outras novas tendências, os carismáticos independentes surgiram no período que chamamos de pós-modernidade. E neste novo mundo de verdades relativas e comunidades fragmentadas, se viram diante do desafio de responder ao mundo e às igrejas do passado qual era a verdadeira identidade do cristianismo. A julgar pela sua taxa de crescimento que se expande a cada nova pesquisa, parece que sua resposta tem sido bem-vinda. Em um mundo que sofre os efeitos da Globalização e que é saturado de mídia após a Revolução Digital, sua estratégia de comunicar vida cristã pela internet provou-se eficaz. Estudos, pregações, e especialmente, a música: essa igreja do século 21 é a divulgadora por excelência da adoração profética. Ministérios como a Bethel Church, IHOP-KC e a Global Awakening, do apóstolo Randy Clark, gerenciam networks com milhares de igrejas ao redor do mundo⁵ — o que significa que você não precisa se filiar à uma nova igreja, basta fazer parte da “rede de influência”.
Apenas por ser uma nova tendência, a igreja carismática independente e seu modelo de culto, a adoração profética, já seriam dignos de atenção. No entanto, existe um fator mais importante: sua relação com o mundo pós-moderno. Os carismáticos independentes procuram oferecer uma alternativa cristã ao espírito de nosso tempo, pregando um relacionamento pessoal com Jesus Cristo, que nos capacitaria para influenciar as esferas da sociedade a favor do Reino de Deus. Embora os líderes destas igrejas revelaram realmente uma alternativa (politicamente conservadora) contra a pós-modernidade — em favor da “influência do Reino na sociedade”, apoiaram Donald Trump e Jair Bolsonaro⁶, nomes que advogam em defesa dos “valores cristãos tradicionais” — o que estudos mais recentes têm mostrado é que sua teologia, e mais precisamente, seu culto, com um individualismo estrutural, ênfase no desejo de consumo e busca desenfreada pela autenticidade tem alimentado o espírito do nosso tempo. A adoração profética seria uma versão gospel da cultura pós-moderna.
Sendo assim, o crescimento global das igrejas carismáticas independentes seria, no fim de tudo, uma expansão global da vida pós-moderna. Isto se torna ainda mais claro se tivermos em mente que, na tentativa de responder à crise de identidade evangélica na contemporaneidade, a opção pela busca da autenticidade acabou por lançar ao mar o legado histórico da igreja⁷. E, enquanto se busca fugir da tempestade pós-moderna, não se percebe que o problema está no próprio barco.
Apesar de serem uma novidade, os carismáticos independentes estão longe de ser o futuro da igreja. Eles já são o presente. No Brasil, a estimativa é que este grupo cresça 11,2% em 2020, isso é duas vezes maior que o crescimento de qualquer outro segmento evangélico — e apesar de aqui ainda não serem maioria, o Brasil já é o segundo país com maior número de igrejas carismáticas independentes (atrás apenas dos EUA). A nível global, a estimativa é que em 2020 os carismáticos independentes representem 44,1% de todos fiéis pentecostais da população evangélica mundial⁸.
Depois de toda essa informação, você deve ter percebido que a questão é mais abrangente que debater a viabilidade da dança, teatro e a apresentação de determinadas músicas no culto (como era na década passada), por mais que envolva isso, de alguma maneira. É preciso entender também o que possibilitou que essa discussão surgisse. Sendo assim, gostaria de te convidar a acompanhar esta série sobre o culto cristão na pós-modernidade, para que entendamos o trajeto percorrido para que a igreja chegasse ao estado em que a encontramos hoje.
No próximo texto, retornaremos aos anos 2000, e veremos como um livro publicado na Austrália provocou uma revolução global na nossa perspectiva sobre culto e adoração.
Fonte: https://leo-cruz.medium.com/chapa%C3%A7%C3%A3o-11ab5cb5ffe0
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