O sacerdócio universal dos crentes, um dos ensinos pilares da reforma protestante, é algo meio desconhecido atualmente nas igrejas evangélicas, principalmente no meio pentecostal e neopentecostal. Não é incomum ouvir dizer que o pastor é o ungido do Senhor, o sacerdote, que ele é que pode ministrar a benção na vida do povo, etc.
A hierarquia deve existir, mas sem exageros, sem criar uma casta de privilegiados. Eu sempre me pergunto sobre o porquê daquelas cadeiras especiais para pastores no púlpito? Causa indignação, e com razão, em muitos crentes o fato do povão em épocas de festas nas igrejas comeram o mesmo tipo de almoço durante todos os dias do evento, enquanto há um espaço separado para pastores e suas esposas com comidas melhores. E, também, sempre há eventos onde a mesa do pastor tem Coca-Cola e dos fiéis um refri de quinta categoria. Ora, eu sou pastor, e penso que se o objetivo de separar os pastores, for o de terem um espaço mais reservado para conversar e tratar alguma coisa enquanto fazem as refeições, não vejo problema, desde que a alimentação seja a mesma do povo, sem banquete especial. O texto abaixo do Alderi Souza Matos, deve ser lido com atenção:
"Dentre os princípios fundamentais defendidos pelos
reformadores do século XVI, está o “Sacerdócio Universal dos Fiéis” ou
“Sacerdócio de Todos os Crentes”. Os outros princípios, dos quais este
decorre, são as Escrituras como norma suprema de fé e vida e a salvação pela
graça mediante a fé, alicerçada na obra redentora de Jesus Cristo.
Embora o Velho Testamento apresente claramente a
noção de um ofício sacerdotal exercido por elementos da tribo de Levi em
benefício do povo de Israel, existem passagens que antecipam um entendimento
mais amplo dessa função. Êxodo 19.5-6: “Se diligentemente ouvirdes a minha voz,
e guardardes a minha aliança, então sereis a minha propriedade particular dentre
todos os povos... vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa”. Outro texto
relevante é Isaías 61.6: “Vós sereis chamados sacerdotes do Senhor, e vos
chamarão ministros de nosso Deus”.
1. Novo Testamento
No Novo Testamento, o conceito de
sacerdócio tem dois aspectos: (a) Jesus Cristo é o grande sumo
sacerdote: todas as funções do sacerdócio da antiga dispensação
concentram-se nele, e são por ele transformadas. Ele é o único mediador entre
Deus e os seres humanos (1 Tm 2.5). Ele é o representante de Deus junto aos
homens e o representante dos homens junto a Deus. Ele é, ao mesmo tempo, o
sacerdote e o sacrifício. A Carta aos Hebreus expõe claramente a superioridade
do sacerdócio de Cristo sobre o sacerdócio levítico e apresenta o caráter
definitivo e totalmente eficaz do seu auto-sacrifício sobre a cruz (Hb 2.17;
3.1; 4.14s; 5.10; 6.20; 7:24-27; 9:12,26; 10.12). A literatura joanina também
fala repetidamente do sacerdócio de Cristo, como em João 1.29.
(b) Todos os crentes partilham desse
sacerdócio: isso se expressa principalmente nas áreas da adoração, serviço
e testemunho. 1 Pedro 2.5: “Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois
edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes
sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”. 1
Pedro 2.9: “Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de
propriedade exclusiva de Deus, a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos
chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. O Apocalipse destaca o aspecto
governamental desse sacerdócio: “Àquele que nos ama, e pelo seu sangue nos
libertou dos nossos pecados, e nos constituiu reino, sacerdotes para o seu Deus
e Pai...” (1.5-6); “Digno és de tomar o livro e de abrir-lhe os selos, porque
foste morto e com o teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda
tribo, língua, povo e nação, e para o nosso Deus os constituíste reino e
sacerdotes” (5.9-10).
O Novo Testamento não menciona a existência de um
ofício sacerdotal na Igreja. Essa idéia surgiu posteriormente, em escritores
como Clemente (ministério cristão composto de sumo sacerdote, sacerdote e
levita), a Didaquê (chama os profetas cristãos de “vossos sumos sacerdotes” e
refere-se à eucaristia como um sacrifício) e, mais especificamente, em
Tertuliano e Hipólito, que se referem aos ministros cristãos como “sacerdotes” e
“sumos sacerdotes”.
2. Idade Média
Na Idade Média, desenvolveu-se
plenamente a idéia do sacerdócio (o clero) como uma classe distinta dos leigos,
dotada de dignidade e direitos especiais. Essa idéia resultou do entendimento da
eucaristia como um sacrifício – a repetição do sacrifício de Cristo –, o que
exigia a figura do sacerdote. Além disso, a noção de que os (sete) sacramentos
são canais quase que exclusivos da graça de Deus e só podem ser ministrados
através do sacerdócio, deu aos sacerdotes, à hierarquia, um enorme poder sobre
as vidas dos fiéis. Os leigos tornaram-se totalmente dependentes da ministração
dos sacerdotes para receberem os benefícios da graça de Deus e, em última
análise, a própria salvação.
Um exemplo dos malefícios causados por esses dogmas
pode ser visto na prática do interdito ou interdição, um instrumento utilizado
pelos papas e outros líderes religiosos contra os reis europeus, mediante o qual
o clero ficava proibido de ministrar os sacramentos em uma cidade, região ou
país inteiro como um instrumento de pressão político-religiosa.
3. Martinho Lutero
Em sua peregrinação espiritual,
Lutero veio a ter uma compreensão da graça de Deus que se chocou frontalmente
com esse entendimento da Igreja e do ministério cristão. A partir de 1512,
quando se tornou professor de estudos bíblicos na Universidade de Wittenberg,
ele começou a encontrar nas Escrituras uma série de verdades revolucionárias a
respeito da salvação. A salvação fundamentava-se exclusivamente na graça de Deus
e na obra expiatória de Cristo. Mediante a fé ou confiança nessa graça e nessa
obra, o indivíduo era justificado, ou seja, aceito como justo por Deus, sendo
que essa fé também era uma dádiva do alto. As obras ou méritos humanos não
desempenhavam nenhum papel nesse processo, mas a salvação era, do começo ao fim,
uma dádiva da livre graça de Deus ao pecador arrependido.
A partir de 31 de outubro de 1517, Lutero passou a
elaborar as implicações mais amplas dessa nova percepção. Ele o fez
principalmente através de uma obra que escreveu em 1520, A Liberdade do
Cristão, onde argumenta que “de posse da primogenitura e de todas as
suas honras e dignidade, Cristo divide-a com todos os cristãos para que por meio
da fé todos possam ser também reis e sacerdotes com Cristo, tal como diz o
apóstolo Pedro em 1 Pe 2.9... Somos sacerdotes; isto é muito mais que ser reis,
porque o sacerdócio nos torna dignos de aparecer diante de Deus e rogar pelos
outros”.
Mais adiante ele pondera: “Tu perguntas: ‘Que
diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na cristandade, se todos são
sacerdotes?’ A resposta é: as palavras ‘sacerdote’, ‘cura’, ‘religioso’ e outras
semelhantes foram injustamente retiradas do meio do povo comum, passando a ser
usadas por um pequeno número de pessoas denominadas agora ‘clero’. A Escritura
Sagrada distingue apenas entre os doutos e os consagrados, chamando-os de
ministros, servos e administradores, que devem pregar aos outros a Cristo, a fé
e a liberdade cristã. Já que, embora sejamos todos igualmente sacerdotes, nem
todos podem servir, administrar e pregar. Como disse Paulo em 1 Co 4.1: “Assim,
pois, importa que os homens nos considerem como ministros de Cristo, e
despenseiros dos mistérios de Deus.” (A Liberdade do Cristão, cap. 17).
Os leigos têm a mesma dignidade que os ministros.
Todas as profissões e atividades são igualmente valiosas aos olhos de Deus. Os
ministros diferenciam-se dos leigos simplesmente nisso: foram escolhidos para
realizar certos deveres definidos, para que haja ordem na casa de Deus. Foi esse
princípio do sacerdócio de todos os crentes que libertou os homens do temor e
dependência do clero. É o grande princípio religioso que jaz na base de todo o
movimento da Reforma. Não somente Lutero, mas todos os demais reformadores o
afirmaram, em especial João Calvino.
4. Implicações práticas
Dessa verdade bíblica, decorrem
algumas implicações práticas:a) O princípio do sacerdócio universal dos crentes nos fala do grande privilégio que temos como filhos de Deus: cada cristão é um sacerdote, cada cristão tem livre e direto acesso à presença de Deus, tendo como único mediador o Senhor Jesus Cristo.
b) Todavia, esse princípio jamais deve ser entendido
de maneira individualista. A ênfase dos reformadores está no seu sentido
comunitário. Somos sacerdotes uns dos outros, devendo orar, interceder e
ministrar uns aos outros. À luz do Novo Testamento, todo cristão é um ministro
(diákonos) de Deus, o que ressalta as idéias de serviço e
solidariedade.
c) Num certo sentido, todos os crentes são “leigos”,
palavra que vem do termo grego laós, o povo de Deus. Todavia, a
Escritura claramente fala de diferentes dons e ministérios. Alguns cristãos são
especificamente chamados, treinados e comissionados para o ministério especial
de pregação da Palavra e ministração dos sacramentos.
d) Os leigos, no sentido daqueles que não são
“ministros da Palavra”, também têm importantes esferas de atuação à luz do Novo
Testamento. Os líderes da Igreja devem falar sobre o ministério do povo de Deus,
bem como instruir e incentivar os crentes e desempenharem o seu ministério
pessoal e comunitário. A placa de uma igreja nos Estados Unidos dizia o
seguinte: “Pastor: Rev. tal; Ministros: todos os membros”.
e) O sacerdócio universal dos crentes corre o risco
de tornar-se mera teoria em muitas igrejas evangélicas. Sempre que os pastores
exercem suas funções com excesso de autoridade (1 Pedro 5.1-3), insistindo na
distância que os separa da comunidade, relutando em descer do pedestal em que se
encontram, concentrando todas as atividades de liderança e não sabendo delegar
responsabilidades às suas ovelhas, tornando as suas igrejas excessivamente
dependentes de sua orientação e liderança, não dando oportunidades para que as
pessoas exerçam os dons e aptidões que o Senhor lhes tem concedido, há um
retorno ao sacerdotalismo medieval contra o qual Lutero e os demais reformadores
se insurgiram.
Que o Senhor nos dê a graça de valorizarmos e
praticarmos fielmente o princípio bíblico do sacerdócio de todos os crentes,
redescoberto pelos reformadores do século XVI. Dessa maneira, seguindo a verdade
em amor, cresceremos “em tudo naquele que é o cabeça, Cristo, de quem todo o
corpo, bem ajustado e consolidado, pelo auxílio de toda junta, segundo a justa
cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si
mesmo em amor” (Ef 4.15s)".
Fonte: http://www.mackenzie.br/6967.html
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