Fui assistir ao filme Real – Um plano por trás da história, do diretor Rodrigo Bittencourt, no pré-lançamento que aconteceu em São Paulo nesta quarta-feira (17). A sinopse indicava que se trata de uma produção para contar como foi orquestrado o plano de estabilização econômica que tirou o Brasil da nefasta era da hiperinflação. Entretanto, logo no início fica claro que o enredo é torno de apenas um dos personagens centrais da história – o economista Gustavo Franco.
  
O Plano Real foi implementado em 1994, em duas fases básicas – a adoção da URV em fevereiro e, em junho, a troca para a nova moeda, o Real. A complexidade da criação do plano que salvaria o país das crises deixadas pelos anteriores fracassados, mais o trauma do impeachment de Collor, exigia muita genialidade e apoio político incondicional. O que foi possível reunir com a credibilidade que Fernando Henrique Cardoso tinha para convidar a turma certa e disposta a colaborar, e para convencer o ex-presidente Itamar Franco de impor a mudança ao Congresso Nacional.

O filme dá responsabilidade quase exclusiva pelas ideias, pela forma e pela condução dos fatos, ao Gustavo Franco, tirando dos outros personagens-chave do processo o peso que tiveram em todas as etapas da história. Pedro Malan, Pérsio Arida e André Lara Resende são tratados como secundários na tomada de decisões e até FHC foi retratado como um refém do economista carioca com temperamento dificílimo e arrogante – um bom retrato da fama do ex-presidente do BC.

A sequência dos acontecimentos, à parte das passagens da vida pessoal de Gustavo Franco, segue o script correto, relatado e registrado pela imprensa e por tantas obras literárias que surgiram desde a época. O filme foi baseado no livro do jornalista Guilherme Fiuza – “3000 dias no Bunker – Um plano na cabeça e um país na mão”, de 2006. A preocupação de Itamar Franco com a ameaça de mais um fracasso, o aprofundamento da crise econômica e a resistência do Partido dos Trabalhadores realmente marcaram a trajetória do Plano, como mostra o filme.

Senti falta de uma peça imprescindível na elaboração do Plano e, mais ainda, na salvação dele depois da desvalorização forçada em 1999 – o ajuste das contas públicas. O filme fala da quebradeira dos estados, das estatais, do comprometimento dos bancos públicos, mas não conta como estes problemas foram superados. O governo mais do que dobrou a carga tributária para lidar com os ‘esqueletos’ de gastos públicos que não eram contabilizados.

Logo depois da implementação da nova moeda, Fernando Henrique teve que promover a renegociação das dívidas dos estados e dos bancos regionais, o que custou bilhões aos cofres públicos. Os bancos estaduais foram federalizados e o governo  fechou a torneira da fonte de financiamento que os governadores se valiam para bancar seus projetos políticos. Também a um custo bilionário ao país.

Para fazer caixa, aliviar as obrigações do estado e atrair investimento privado, FHC deu continuidade e aumentou o plano de privatização que tinha começado com Collor. Com apoio do Congresso Nacional, o tucano quebrou os monopólios da telecomunicação e do petróleo, o que era impensável poucos anos antes. O sucesso do Plano Real tinha dado força política à presidência de FHC e enfraquecido a oposição liderada pelo petista Lula – que tinha sido veemente contra o Plano Real.

No setor privado, empresas e bancos simplesmente não sobreviveram ao novo mundo sem inflação, já que se sustentavam do ‘overnight’ para manter os ganhos, apesar do ambiente altamente distorcido da economia. A quebradeira, também por fraudes, levou o governo a criar o PROER, Plano de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, para evitar que o fechamento das instituições provocasse um risco sistêmico na economia.

Estas passagens não aparecem no filme de Rodrigo Bittencourt, o que acaba distorcendo a realidade, já que sem as privatizações, o saneamento dos estados, o PROER e o aumento da carga tributária, seria inviável bancar a nova moeda. Para garantir a paridade do real com o dólar, o governo mantinha a moeda americana sob controle, o que acabou custando fortunas, principalmente quando das seguidas e graves crises internacionais que abalaram o mundo todo: do México, dos Tigres Asiáticos e a derradeira crise da Rússia.

A transição para a fase pré-desvalorização do real, entre 1998 e 1999, ficou confusa e também omitiu decisões absolutamente essenciais ao salvamento do Plano. Quando teve que soltar o câmbio, o governo precisou achar uma nova âncora da moeda, caso contrário iria tudo por água abaixo. Quem trouxe a nova ferramenta foi Armínio Fraga, bem no início de 1999, logo depois de Gustavo Franco ter deixado o BC abruptamente e Chico Lopes ter se desafortunado com as bandas endógenas para o dólar.

Armínio e a turma que o acompanhou para o Banco Central, só aceitaram o chamado depois que Fernando Henrique e Pedro Malan se comprometeram em fazer um ajuste fiscal mais profundo, adotando o superávit primário nas contas públicas e o sistema de metas para inflação. “Sem o fiscal eu não iria”, me contou um dos personagens da segunda fase do Plano Real. O compromisso do governo com a promessa ficou claro logo em 2000, quando foi aprovada a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O filme Real – O plano por trás da história, conta apenas uma parte da história. Gustavo Franco é o centro das atenções do roteiro, sua teimosia e arrogância mordaz diante das crises, das dúvidas dos políticos, seu sarcasmo e quase sadismo com as pessoas que interagiam com ele, podem ter sido fieis ou exageros do drama, que só o personagem real, já abusando do trocadilho, poderá dizer se condizem com a verdade. Gustavo teve sim papel crucial na formulação e implementação do Plano, mas o Brasil deve a muito mais gente séria o sucesso da empreitada. 

Fonte: http://g1.globo.com/economia/blog/thais-heredia/post/outra-parte-da-historia-de-real-um-plano-por-tras-da-historia.html