segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Vladimir Putin - O autocrata da Rússia

 O manual do autocrata que ameaça democracias mundo afora foi criado e posto em prática primeiro pelo presidente russo, que acaba de conquistar o direito de ficar no poder até 2036


Vladimir Putin durante conferência, em 1º de julho de 2020 — Foto: Sputnik/Alexei Druzhinin/Kremlin/Via Reuters

Vladimir Putin durante conferência, em 1º de julho de 2020 — Foto: Sputnik/Alexei Druzhinin/Kremlin/Via Reuters

Quem se lembra do burocrata discreto de 46 anos que apareceu ao lado de Bóris Yeltsin no final de 1999, aquele que parecia ao mundo a única solução para “segurar as pontas” diante do abandono do cargo pelo então desacreditado presidente russo, pelo menos até as eleições no início do ano seguinte?


Pois as “pontas” estão atadas às mãos dele até hoje e, a depender do resultado do plebiscito anunciado ontem na Rússia, Vladimir Putin poderá ficar no poder por mais dois mandatos de seis anos ao final do atual, em 2024. Se comandar a Rússia até 2036, quando terá 83 anos, terá sido o mais longevo líder russo desde o czar Pedro, o Grande, que governou o país por 43 anos até 1725.


Comparações de Putin com os czares se tornaram um chavão. Assim como o paralelo com o ditador Josef Stálin, que governou por 28 anos até a morte em 1953, ano em que Putin nasceu. Embora a ideia de uma “presidência vitalícia” tenha sido aventada por um aliado, o regime instaurado por Putin na Rússia e consolidado pelos 73% dos votos que apoiaram as reformas constitucionais no plebiscito da semana passada, é mais sofisticado que o czarismo ou o stalinismo.


Putin foi um precursor da crise que se abate sobre as democracias e deu azo ao populismo nacionalista de Donald Trump, Viktor Orbán, Rodrigo Duterte, Bibi Netanyahu, Nicolás Maduro ou Jair Bolsonaro. Foi ele quem inventou o manual do autocrata contemporâneo, tema de dezenas de livros e teses de ciência política.


Parlamento dócil com oposição de fachada? Obra de Putin. Controle do Judiciário com aparelhamento de cortes superiores? Putin fez. Máquina de propaganda e geração de notícias falsas? Putin de novo. Controle da informação e censura? Putin. Discurso nacionalista contra o “globalismo”? Putin, claro. Ideólogo de estimação para dar verniz intelectual a ataques aos “inimigos do povo”? Putin tem, oras. Para onde se olha, é Putin, Putin, Putin…


Não tem pra ninguém. Putin criou o sistema que mantém um parentesco longínquo com a democracia, de tempos em tempos realiza eleições para justificar a própria legitimidade, mas sufoca vozes discordantes e oposicionistas por meio do controle quase absoluto sobre a informação e as instituições. É um sistema muito mais eficaz e estável que o czarismo ou o stalinismo.


Mesmo num momento de baixa popularidade como o atual, Putin conta com aprovação pouco abaixo de 60% (ante mais de 80% na média) e arrebanha 73% dos votos num plebiscito que concentra mais poderes nas suas mãos (sob as previsíveis acusações de fraude na apuração).


Sua descoberta política nem é tão genial assim. Em vez de promover guerras sem fim, expurgos sem sentido ou de mandar milhões para os gulags, em vez de tocar o terror, bastam ações concentradas nas poucas ameaças reais ao poder, sem que jamais seja possível estabelecer conexão direta delas com o governo. Simples assim.


É um polônio em Londres, um novichok em Salisbury, um tiro misterioso que mata Boris Nemtsov em Moscou, a prisão e o exílio de oligarcas rebeldes (como Boris Berezovsky ou Mikhail Khodorkovsky) – e a certeza de que polícia, procuradores e juízes sempre estarão do seu lado na hora de investigar os fatos. A imprensa dócil se curva à versão oficial, e a narrativa da Grande Rússia está ao alcance para mobilizar a população.


Na cena externa, o mesmo estilo. Ataques de hackers misteriosos para interferir em eleições, em vez de ogivas nucleares. Militares disfarçados para invadir a Ucrânia, em vez de forças convencionais. Financiamento de terroristas para matar militares ocidentais no Afeganistão. O recurso às próprias Forças Armadas apenas em último caso, como na Síria, para fincar a bandeira russa numa região estratégica ao Ocidente.


É inegável o avanço, em duas décadas, do poder russo pelo arco de países que formavam a União Soviética e pela Europa Oriental. Apesar do declínio econômico, da piora nas condições de vida da população russa e da perda de relevância relativa na cena global, o regime de Putin trouxe de volta aquele orgulho singular que, misturado ao desconsolo, parece definir a alma russa.


Tudo com a discrição e a sutileza de quem mantém até hoje, apesar das imagens de força em quadras de hóquei ou das proezas nos ambientes selvagens, aquele mesmo sorriso sardônico do ex-agente-secreto da KGB. O mesmo aspecto discreto de burocrata inofensivo.


Tecnicamente, depois da aprovação das mudanças constitucionais no Parlamento, o plebiscito da semana passada nem era necessário. Mas Putin é o mestre das aparências e do jogo duplo. Por que não dar o devido ar democrático a mudanças que lhe permitem demitir juízes, procuradores e lhe dão imunidade mesmo se quiser deixar o cargo?


Por que não aproveitar para inflamar ainda mais os acólitos conservadores, transformando em crime aqueles que discordarem da narrativa oficial da história russa ou inscrevendo na Constituição a definição de casamento apenas como união “entre homem e mulher”? Eis, desde sempre, a questão que serve de justificativa a todos os candidatos a tirano: por que não?


Fonte: Helio Gurovitz via G1 - https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/2020/07/02/foi-putin-quem-inventou-tudo.ghtml




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