sexta-feira, 4 de março de 2022

Por que alguns religiosos estão vendo sinais do fim do mundo



Guerra, peste e catástrofes naturais recentes reavivam o interesse pelas profecias no livro mais enigmático da Bíblia

Há quem acredite que os ponteiros do relógio que faz a contagem regressiva para o fim do mundo foram adiantados em alguns minutos desde que uma peste se instalou no planeta Terra, infectando 365 milhões de vidas e dizimando 6 milhões num período de dois anos. Crentes e descrentes passaram a observar com mais atenção os sinais dos tempos, buscando na esfera cósmica alguma explicação. Como se não bastasse, uma nova guerra; cenas hollywoodianas de eventos climáticos extremos, como a erupção furiosa de um vulcão na Espanha; incêndios incontroláveis em florestas na Austrália; furacões e tempestades deixando rastros de lama e de morte em todos os continentes - todos esses elementos somados reforçaram a leitura religiosa de que o Apocalipse, que já teve data marcada para acontecer várias vezes por supostos profetas ao longo da História, agora estaria mais próximo. 

O interesse das pessoas pelos temas escatológicos - que estão relacionados ao estudo do fim dos tempos - é recorrente e já foi cantado em verso e prosa por vozes tão distintas quanto as de Jim Morrison, dos The Doors, Johnny Cash, Raul Seixas e Roberto Carlos (“O Apocalipse”), passando pelo Iron Maiden e pelo ex-representante das trevas em pessoa - Ozzy Osbourne. A música pop é apenas uma das vertentes de um imaginário cultural que anuncia o fim da humanidade há mais de dois milênios e que tem, possivelmente, no afresco “O Dia do Juízo Final”, pintado por Michelangelo na parede do altar da Capela Sistina, no Vaticano, um ápice estético. Mas a pandemia certamente reavivou o interesse pelo assunto. Segundo levantamento do Google Trends, a pedido do Valor, o Brasil é o segundo país, atrás de Angola, que mais buscou pelo termo “Apocalipse” em todo o mundo entre fevereiro de 2020 e fevereiro de 2022. Filipinas, Turquia e Belarus vêm em seguida. No mesmo período, o Brasil esteve também entre os 15 que mais procuraram no Google a expressão “fim do mundo”.

 No começo da crise sanitária, as buscas tiveram um salto ainda mais expressivo: na primeira semana de quarentena no Brasil, entre 15 e 21 de março de 2020, as consultas por “profecias” subiram nada menos que 560% ante a semana anterior, enquanto as consultas por “fim do mundo” triplicaram (210%) e por Apocalipse cresceram 220%. “Tal qual alguns entusiastas recentes, para os quais a pandemia seria um sinal do fim dos tempos ou cumprimento das pragas apocalípticas, durante a peste bubônica, no século XIV, o último livro da Bíblia ganhou muitíssima importância entre as pessoas comuns e na arte”, afirma Kenner Terra, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo, professor na Faculdade Unida de Vitória (ES) e autor de “O Apocalipse de João: caos, cosmos e o contradiscurso apocalíptico” (Recriar). 

“A população da Europa, a por aquela silenciosa, rápida e mortífera doença, acreditava viver o tempo da punição divina e o derramamento das taças do Apocalipse, o que significava experimentar de perto a chegada do anticristo. As guerras, acontecimentos científicos importantes, mudança de milênio, catástrofes ou qualquer coisa que lembrasse a transitoriedade da vida intensificavam a sensação do derradeiro, do último tempo”, analisa.

É curioso notar alguns fatos recentes que jogaram lenha na fogueira santa das interpretações proféticas, provocando um verdadeiro frenesi escatológico entre muitos evangélicos brasileiros: A instalação de uma escultura presenteada pelo governo mexicano, em novembro de 2021, na entrada da sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York. Chamada de Guardião da Paz e da Segurança, a estátua foi produzida pelos artistas mexicanos Jacobo e María Angeles e mostra um jaguar com asas de águia e patas de urso. Foi um gesto diplomático para marcar o início da Presidência do México no Conselho de Segurança da ONU, mas, em alguns perfis de publicações evangélicas nas redes sociais, ela foi associada à imagem da besta do Apocalipse, descrita no capítulo 13, verso 2, do último livro da Bíblia: “A besta que vi era semelhante a um leopardo, mas tinha pés como os de urso e boca como a de leão. O dragão deu à besta o seu poder, o seu trono e grande autoridade”.

A assinatura de acordos de paz e de cooperação entre Israel, Emirados Árabes Unidos e Bahrein, no dia 15 de setembro de 2020, no gramado da Casa Branca, em Washington, com mediação dos Estados Unidos, que ficaram conhecidos como Acordos de Abraão. Foi considerado um fato diplomático importante na construção de relações socioeconômicas entre nações até então inimigas, mas cristãos conservadores avaliaram que o tratado é um sinal da aproximação do governo do anticristo. A passagem bíblica que justifica tal avaliação está em Daniel 9:27: “Com muitos ele fará uma aliança que durará uma semana. No meio da semana ele dará fim ao sacrifício e à oferta. E numa ala do templo será colocado o sacrilégio terrível, até que chegue sobre ele o fim que lhe está decretado”.

A leitura sobre o fim dos tempos é uma variável muito importante na geopolítica internacional, e isso é uma via de mão dupla” “O cristão evangélico médio não costuma entender muito de política internacional, por isso há tantas teorias da conspiração e tanta gente achando que o anticristo vai surgir de tudo que é lado. Este é, historicamente, um cargo muito disputado”, afirma Igor Sabino, doutorando em ciência política na Universidade Federal de Pernambuco e autor de “Por amor aos patriarcas: reflexões brasileiras sobre antissemitismo e sionismo cristãos” (Editora 371). Sabino dirige no Brasil a Philos Project, organização não governamental que surgiu nos Estados Unidos em 2015 justamente para promover um “engajamento cristão mais bem informado e positivo nas questões ligadas ao Oriente Médio”. 

Em sua pesquisa de o, que trata da influência da religião na geopolítica global, Sabino trabalha para mostrar que tanto os fatos influenciam a leitura da Bíblia como a maneira de ler a Bíblia afeta o posicionamento político das nações. “A leitura sobre o fim dos tempos é uma variável muito importante na geopolítica internacional, e isso é uma via de mão dupla.”

Embora a maneira de interpretar o Apocalipse e as demais profecias bíblicas que tratam do juízo final tenha evoluído nas últimas duas décadas, com uma crescente oferta de livros e artigos acadêmicos que apresentam uma visão alternativa ou simbólica dos textos, a leitura chamada de dispensacionalista, ou pré-milenista, segundo estudiosos, ainda predomina no Brasil.

Os dispensacionalistas tendem a ler o Apocalipse como um mapa cronológico do final dos tempos, uma sequência de acontecimentos dramáticos que culminaria no retorno de Jesus Cristo à terra, conforme prometido por ele mesmo no evangelho de Mateus, capítulo 24. O roteiro seria mais ou menos assim: antes de Cristo voltar para assumir seu reinado, haveria um grande desequilíbrio ecológico, que resultaria em pestes, terremotos assustadores, cataclismas planetários e uma grande perseguição religiosa, promovida por um líder mundial antissemita que a Bíblia chama de anticristo. Esse todo-poderoso exigiria ser cultuado, como se fosse um imperador romano, e promoveria uma falsa paz mundial durante três anos e meio, para em seguida perseguir os judeus de todo o mundo. No final, Jesus chegaria para defender seu povo, ser reconhecido por ele como Messias e daria início enfim a um tempo de paz e prosperidade.

 “Não há estatísticas sobre o tema no Brasil, mas posso garantir que a maioria dos evangélicos aqui faz essa leitura mais conservadora, que é muito influenciada pela teologia fundamentalista americana”, afirma Paulo Nogueira, doutor em teologia, professor-pesquisador da pós-graduação em ciências da religião da PUC-Campinas e autor de “Breve história das origens do cristianismo” (Santuário) e “O que é o Apocalipse” (Brasiliense). Essa forte ascendência sobre o pensamento teológico brasileiro, segundo Nogueira, tem a ver com as “relações quase coloniais de dependência cultural em relação às teologias americanas. 

Se você vai a uma livraria evangélica tradicional, você verá que a grande maioria dos títulos são traduções de obras do inglês”. Temos doenças,fome, miséria, violência de todo tipo, a natureza se desfazendo. Como vamos sair? Reforçando a união e a fraternidade” “Por causa da influência de missionários americanos, tivemos uma ênfase na escatologia futurista, de visão dispensacionalista, que enfatiza essa ideia de prestar atenção nos sinais que apontam para a segunda vinda de Cristo. Essa corrente foi reforçada por produções cinematográficas como os filmes da série ‘Deixados para trás’, baseados nos livros dos autores americanos Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins”, afirma Luiz Sayão, teólogo, tradutor bíblico e mestre em hebraico pela USP. A série vendeu 63 milhões de livros e foi traduzida para 27 idiomas, segundo informações da editora Tyndale. 

Além disso, segundo Nogueira, até o ano 2000, as faculdades de teologia no Brasil “viviam no porão”. “Qualquer fundo de igreja podia abrir uma escola de teologia, chamá-la de faculdade e emitir o diploma de bacharel. Ao lado de faculdades reconhecidas, como as PUCs, as ligadas aos luteranos, metodistas, presbiterianos e batistas, havia uma enorme quantidade de cursos com conhecimento insuficiente, quando não bizarro.” Isso mudou há 20 anos, quando o Ministério da Educação regulamentou os cursos, passando a exigir uma série de requisitos curriculares, de formação e contratação dos docentes, entre outros, que elevaram o nível das escolas.

Outro fenômeno que contribuiu para uma renovação no pensamento teológico nacional foi a difusão dos cursos de pós-graduação em teologia e ciências da religião. “Após os anos 90, muita gente fez mestrado e doutoramento em instituições avaliadas pela Capes, com saber científico e conhecimento literário e histórico do texto bíblico. Hoje, temos muito mais teólogos pensando criticamente. Este é um processo fundamental, embora lento. A área de ciência da religião é estratégica, pois através dela a gente vai desarmando ideologias e teologias que podem ser nocivas à sociedade”, afirma Nogueira. 

Nesse contexto, Kenner Terra é um desses novos autores que unem a corrente de interpretação simbólica à vertente conhecida como preterista - que propaga que todas as previsões do Novo Testamento referentes ao fim dos tempos já se cumpriram em 70 d.C., quando os romanos destruíram o templo em Jerusalém. Segundo ele, a carta que o apóstolo João escreveu às sete igrejas da Ásia, região onde hoje se situa a Turquia, é tanto uma narrativa com elementos litúrgicos e de fundo espiritual, com descrições detalhadas de cerimônias de adoração a Deus, quanto um alerta real contra os perigos que os cristãos corriam de serem cooptados pelo “espírito” de Roma. “Céus e terra têm uma continuidade. 

O Apocalipse tem a função de descrever o cosmos e fazer uma exortação a seus ouvintes sobre o risco das relações promíscuas entre a fé e o poder”, afirma Terra. “O Império Romano tem um discurso sedutor, a chamada Pax Romana, um sistema de organização socioeconômica baseado na força e no culto ao imperador. Submeter-se a ele e ao sistema, segundo essa mensagem, seria garantir a paz.” Mas o profeta e visionário João, preso pelo império na ilha grega de Patmos, usa as imagens apocalípticas para fazer uma denúncia. “Ele propõe dois caminhos para os cristãos: escolherem ser uma voz profética e crítica ao sistema - o que irá resultar em martírio e perseguição; ou então serem seduzidos e receber a marca da besta - o que ao final resultará em condenação espiritual eterna.” Sujeitar-se a Roma, nesse sentido, é trair o evangelho de Cristo. O católico Isidoro Mazzarolo, doutor em teologia bíblica pela PUC-Rio, PhD em exegese bíblica pela Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém e autor de “O Apocalipse - esoterismo, profecia ou resistência” (edição do autor), diz acreditar que a leitura da resistência é a que rechaça a manipulação política e, diante do sofrimento humano, aposta na força da união e da solidariedade.

“O contexto do apóstolo João era de caos. Havia perseguição contra os cristãos e o templo dos judeus fora destruído. De que forma a Igreja deveria se contrapor? Não com armas, mas com unidade. Eles se juntam e se fortalecem. De tal forma que crescem mesmo em meio à perseguição.” Para Mazzarolo, é como nos dias atuais. “Temos hoje a pandemia como caos instaurado. Temos doenças, fome, miséria, violência de todo tipo, a natureza se desfazendo. Também vivemos um tempo caótico. O que fazer diante disso? Como vamos sair? Reforçando a união e a fraternidade.” O livro do Apocalipse, portanto, teria, sob essa ótica, recados importantes para os dias de hoje. “É uma crítica a qualquer tipo de cooptação da fé pelo poder político. Nada mais atual”, afirma Terra.

Apesar das descrições assustadoras de dragões, bestas de dez chifres e abismos cheios de gafanhotos, os últimos capítulos, segundo o pesquisador, devem servir de alento aos leitores do século XXI, mesmo em dias tão difíceis. “Podemos nos inspirar com suas intuições, com a esperança que prevalece no final, com a ideia de que a justiça vence, que é Cristo quem governa, e não César. Podemos aprender com ele que é necessário tomar cuidado com a sedução de poder de qualquer império, e não vender a alma para nenhum projeto de poder político que implique injustiça, e se posicionar de maneira crítica diante de qualquer projeto que resulte em violência e desumanização.”

Fonte: Por Marília Cesar Camargo. Link: 


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