O
cristianismo institucional está longe de desconhecer a ruptura. Na verdade, as
rupturas existem precisamente porque o cristianismo institucional escolhe
definir-se por elas; decide vez após outra que o modo de explicar ao mundo quem
realmente é deve ser sua separação formal daquilo com que afirma não poder
concordar.
Esse forte
desejo pela distinção, esse anseio por não ser contado equivocadamente entre os
errados, inspirou tanto a divisão entre Igreja ocidental e Igreja oriental no
século XI quanto a Reforma Protestante do século XVI. Essas duas
grandes rupturas são mais exemplares do que únicas: antes da Reforma as
divisões dentro da Igreja não eram coisa desconhecida; no universo protestante
deslanchado pela Reforma tornaram-se a regra.
As facções
protestantes e evangélicas, sempre mais numerosas porque mais fragmentadas,
existem porque acham coisa fundamental explicar e anunciar ao mundo o que as
distingue de todas as outras. O que as une, talvez, é entender que seu anseio
por distinguirem-se do catolicismo é maior do que aquele por se distinguirem
uma das outras. Creêm que todos rompimentos formais devem permanecer válidos,
inclusive (ou especialmente) este.
As últimas
décadas, no entanto, tem destilado os sinais de uma iminente e formidável
Reforma no cristianismo institucional, e uma das muitas curiosidades desses
presságios é que assinalam uma ruptura não só dentro dos protestantismos, mas
dentro da própria Igreja católica.
O NOVO TESTAMENTO ESTÁ SE PARTINDO AO MEIO.
Em termos
estritos, no entanto, o que está para quebrar é o movimento
protestante-evangélico, e é disso que no momento podemos nos ocupar.
Há diversos
modos de se representar simbolicamente a tensão que ameaça rasgar o movimento
evangélico-protestante. Alguns líderes explicam que o grande rompimento nascerá
entre os que afirmam a inerrância da Bíblia e aqueles que não; outros garantem
que a maré se fenderá quando todos os envolvidos se virem forçados a declarar
sem subterfúgios se consideram legítimas as uniões homossexuais.
Tratam-se
de tensões muito reais e muito interligadas, mas eu, de minha parte, prefiro
articular a acumulada tensão do seguinte modo: o Novo Testamento está se
partindo ao meio. Durante milênios a fresta entre os Testamentos separou
cristãos de judeus, mas hoje a casa da cristandade – seu conteúdo simbólico e
de significado, por assim dizer – está prestes a se dividir internamente, e
como nunca aconteceu. Depois de aplicar sua pressão por cinco séculos, a obsessão protestante com a letra e com o literal está
tornando finalmente impossível a convivência de textos que por muito tempo
viveram em paz.
Uma nova e
enorme falha geológica pode ser vista cortando o Novo Testamento, e divide
muito claramente os evangelhos (as quatro biografias que narram a passagem de
um Jesus de carne sobre a terra) de todo o resto, em particular das cartas do
apóstolo Paulo.
Para
desenhar brevemente a situação é preciso lembrar, em primeiro lugar, que quando
fala em doutrina e dogma, em teologia e inerrância, o movimento
evangélico-protestante está falando essencialmente de Paulo, e este lido com os
óculos de Lutero. Pode ser injusto afirmar que Paulo inventou a igreja
institucional (eu mesmo sou contado entre os que o isentam dessa culpa), mas é
mais difícil negar que a igreja institucional apropriou-se de Paulo desde o
início, e que sobrevive ainda nos nossos dias de sugar sua paixão, seu zelo e
sua vitalidade.
Que Paulo
esteja certo, e que sua interpretação particular de Paulo esteja certa,
tornou-se fundamental para toda facção de herança protestante da igreja. Se
devemos crer no seu próprio testemunho, Paulo tornou-se para a igreja
contemporânea muito mais importante do que sonhou ou do que desejou ser.
Em
particular, é importante para o protestante que Paulo, e não Jesus, deva ser
entendido literalmente. Inerrante deve ser Paulo, quando delineia uma
hierarquia eclesiástica, quando fornece insumo para a fábrica da predestinação
e quando parece condenar com zelo particular os homossexuais. É muito menos
importante que o Jesus dos evangelhos seja levado tão a sério. Na verdade, é importante
que Jesus não seja entendido literalmente – especialmente quando exige contra-sensos
e explica por exemplo que as prostitutas entram no céu antes dos carolas, que
quem não se desfizer de tudo que possui não tem cacife para ser seu discípulo,
que o certo é emprestar sem esperar retorno, que seus seguidores serão
reconhecíveis pelo amor e não pela ortodoxia, que certo é perdoar sem trâmites
e tratar nossos inimigos como gente querida. Exige-se que os evangelhos sejam
inerrantes quando falam de milagres que ratificam a causa e não exigem uma
mudança de atitude; que o próprio homem Jesus esteja certo naquilo que
explicitamente diz e claramente acreditava… aparentemente não vem ao caso.
A
estratégia da igreja de herança protestante foi desde sempre, portanto, apegar-se
a uma interpretação tendenciosa e seletiva de Paulo, escolhendo onde aplicar
ênfases e onde anular as ênfases do autor que alegam honrar, e ignorar, para todos os sentidos práticos, as
ênfases, as práticas e as exigências do Jesus dos evangelhos.
Na
economia protestante os evangelhos têm o papel de reforçar a realidade dos
milagres e de fornecer na cruz e na ressurreição o pano de fundo da redenção –
e não muito mais do que isso. Entende-se desse modo que tudo que Jesus disse e
fez entre o nascimento virginal e a crucificação não tem qualquer implicação
para a doutrina e para a conduta de um seguidor seu. “Os evangelhos não têm
teologia”, lembrava periodicamente um professor do Seminário Batista mais
próximo de mim, e com isso queria dizer várias coisas: que “teologia” é um
valor auto-evidente, uma forma de virtude, um verdadeiro imperativo categórico;
que a teologia do Novo Testamento, entendida como conteúdo aplicável da
revelação, encontra-se sempre nas palavras de Paulo e nunca nas de Jesus; que o
conteúdo integral dos evangelhos – seus embates, seus desafios, suas subversões
– pode e deve ser ignorado sem maiores problemas pelos que acreditam ser
seguidores de Jesus.
A
apropriação seletiva de Paulo e o simultâneo escanteamento do Jesus dos
evangelhos, como venho dizendo, são tão antigos quanto a igreja institucional e
garantem a sua permanência. A igreja de herança evangélico-protestante, em
especial, depende desses artifícios e os fomenta. Mas embora se trate de uma
demarcação antiga, fatores novos entraram em cena nas últimas décadas que têm
acentuado a tensão entre os pólos, jogando um contra o outro o Jesus dos
evangelhos e o Paulo das cartas. Muitos evangélicos já intuíram que devem
escolher entre um e outro: muitos, mesmo sem o saber, já o fizeram.
A primeira
novidade é uma imagem revigorada do Jesus dos evangelhos,especialmente
(mas não só) dentro da sub-cultura evangélico-protestante. Não escapou à atenção
de certos pensadores cristãos o fato de que, embora o mundo ocidental esteja
cada vez mais secular e encare com desc7onfiança crescente as religiões em
geral e o cristianismo em particular, o índice de aprovação do homem Jesus – o
gentilíssimo e implacável filho do carpinteiro – permanece em alta mesmo diante
de gente não-religiosa. O inclassificável rabi da Galileia – em sua
extravagante defesa das minorias, seu intransigente compromisso com a
não-violência, seu chamado subversivo à gentileza universal – é o herói
não-cantado de praticamente… todo o mundo. O Jesus das narrativas dos
evangelhos é tido como arauto e precursor de todo avanço social bom, generoso e
inclusivo que estamos começando a ver implantados nos nossos dias, e muitos que
reconhecem desse modo a singularidade de Jesus não se dobrariam por nada no
mundo diante do Cristo da teologia, o Salvador glorioso sentado imperialmente à
direita de Deus.
Uns poucos
mas influentes escritores de herança evangélica, em especial Philip Yancey,
decidiram pasmar deliberadamente diante desse mistério. Em obras como O
Jesus que eu nunca conheci, Yancey articula o paradoxo da singularidade do
Jesus homem para um público que por milênios o ignorou: os declarados
seguidores do Cristo de glória. Lendo Yancey, muitos cristãos evangélicos
viram-se obrigados a pesar pela primeira vez o que implica acreditarem ter no
céu um Salvador que na terra foi homem tão indomável e singular.
Outro
fator que tem mostrado seu peso é, dentro da mesma subcultura evangélica, um
renovado interesse e uma nova ênfase sobre a graça.
Curioso é
que quem originalmente vislumbrou na pessoa de Jesus e explicou ao mundo a idéia
de graça – a postura divina de aceitar e de amar com base no seu próprio
cavalheirismo (e não, como fazemos os homens, com base no mérito ou demérito de
quem está sendo amado) – foi nada menos do que o apóstolo Paulo. Durante
milênios, no entanto, os teólogos mantiveram a graça acorrentada às cartas do
apóstolo, onde sob o rótulo arbitrário de “teologia” conseguiam conter o
estrago que a ideia podia fazer em seus dogmas e instituições.
Ao longo
das últimas décadas gente tão diversa quanto H. G. Wells, Paul Tournier, Caio
Fábio, Brennan Manning e J. Harold Ellens têm contribuído para libertar a graça
dessas correntes, deixando-a correr como uma criancinha ao abraço de sua
origem: as palavras, as ênfases, a postura e as histórias do Jesus dos
evangelhos.
“Graça”
deixou de ser um conceito teológico ou um ingrediente da fórmula da redenção, e
passou a ser entendida como a verdadeira definição do caráter do Deus de Jesus
– o Deus de quem Jesus falava e cuja celebração ele vivia. Ao contrário de
qualquer outra divindade desenhada ou descrita pelos homens, o Deus de Jesus é
absolutamente apaixonado pelo homem comum, o pecador ambíguo e sem ficha limpa
que não moveu um dedo para barganhar ou merecer a divina atenção. Esse Deus
intransigente em sua generosidade é o Deus que Jesus encarnava: um Deus que,
por ser tão irresistivelmente humano, tão graciosamente humano, todo homem
deveria ser capaz de desejar.
O terceiro
e decisivo fator a entrar em cena é mais difícil de classificar. Podemos
chamá-lo provisoriamente de crise de relevância das porções do Novo
Testamento tida como normativas.
Quando
falam da Bíblia como sua “única regra de fé e de conduta” protestantes e
evangélicos estão falando da Bíblia inteira, do Velho ao Novo Testamento, com
uma única e notável exceção: os próprios evangelhos. Como observaram H. G.
Wells, H. P. Lovecraft, Bernard Shaw e Soren Kierkegaard, nenhuma nação,
nenhuma igreja – nenhuma instituição humana – ousou embasar seus princípios e
sua conduta sobre as palavras e sobre a postura de Jesus, o rabi de pés
empoeirados que não tinha onde reclinar a cabeça. E se não o fizeram foi porque
o Jesus dos evangelhos simplesmente não pode ser sequestrado, não se dobra por
nada neste mundo às exigências normativas de uma instituição. Nenhuma
instituição, nenhum discurso ou ideologia, nenhuma teologia sobrevive ao Sermão
do Monte.
A solução
protestante para esse embaraço foi tomar como normativas as porções do Novo
Testamento não tocadas pela subversão de Jesus, e encontraram nas cartas de
Paulo um lastro perfeito para suas ambições ideológicas.
A igreja
de matiz evangélico-protestante sobrevive, desse modo, de dividir
ideologicamente o Novo Testamento em duas porções: de um lado os quatro
evangelhos, do outro todo o resto. Jesus, o subversivo professor itinerante, é
mantido prisioneiro nos evangelhos, de onde não pode fazer mal a ninguém.
Na
prática, as coisas funcionam assim: tudo que Jesus diz é declarado contingente;
tudo que Paulo diz é considerado normativo. Jesus não quer nos ensinar nada,
Paulo quer nos ensinar tudo. Quando Jesus diz a seus discípulos que se desfaçam
de seus bens, aquilo só se aplica àqueles ouvintes naquelas circunstâncias;
quando Paulo diz o que quer que seja, o que ele diz se aplica a todos os
ouvintes em quaisquer circunstâncias. O que Jesus diz pode ser ignorado, as
instruções de Paulo são ensino eterno.
Esse
regime funcionou por muito tempo, até que, recentemente, o mundo começou
simplesmente a mudar depressa demais. Finalmente, parte da igreja sentiu-se
pressionada a deixar de fingir que os dilemas de que pesavam sobre Paulo dois
mil anos atrás são os dilemas que pesam sobre nós hoje.
Com toda a
relutância e não sem controvérsia, parte da igreja protestante rompeu
recentemente com o paradigma “Jesus é contingente, Paulo é normativo”. Nos
Estados Unidos, a igreja presbiteriana, a igreja evangélica luterana e a igreja
episcopal já aprovaram, cada uma a seu tempo, a ordenação de pastores
homossexuais, e esse exemplo deve bastar. Em decisões como essa, a igreja
professa que o parecer do Apóstolo sobre um assunto importante era, numa
palavra, condicionado: limitado pela sua posição na sua própria época, da mesma
forma que sua postura sobre a escravidão e sobre o papel da mulher.
Depois de
tanto tempo sustentando o contrário, essa é uma confissão especialmente custosa
para a igreja fornecer. Equivale a confessar: “as posições do apóstolo Paulo em
suas cartas foram determinadas pelas circunstâncias em que as cartas foram
escritas. Suas exaltações são legítimas, mas seus pareceres não têm
necessariamente vocação para a eternidade. As porções do Novo Testamento que
críamos normativas na verdade não são. As circunstâncias são novas, por isso
devemos pensar de modo novo e agir de modo novo.”
Estou
convicto de que o apóstolo assinaria embaixo de cada palavra dessa confissão,
mas ela exige a simultânea destruição do santuário que construímos e temos
estado cultivando para o ídolo de Paulo – santuário que Paulo, que imitava
Jesus também em não querer o primeiro lugar, por certo apaixonadamente
reprovaria.
O
verdadeiramente trágico, no entanto, não é que a igreja protestante tenha
decidido (sem a permissão dele) que Paulo é normativo, e sinta nos nossos dias
o peso de ter de rever ou não essa posição. O trágico é que ela tenha decidido que
Jesus não é normativo, e que esteja muito longe de reconsiderar essa
posição.
É trágico
porque as porções do Novo Testamento que a igreja tomou por normativas têm
pouco a dizer sobre os dilemas que verdadeiramente torturam neste momento o
nosso mundo. Essa é sua crise de relevância. As causas, que destroçam a alma e
determinam o presente de todos e o futuro do nosso mundo, ocupa-se o Jesus
irritadiço e paciente que aguarda nos evangelhos. E enquanto aguarda ocorre a
ele ocasionalmente repetir: “Porque vocês me chamam de ‘Senhor, Senhor’ e não
fazem o que eu digo?”
Essa
é a Reforma/Ruptura de que estou falando: aquela que já existe, e que
finalmente se rasgará, entre os de herança protestante que confessam que partes
do Novo Testamento que consideramos normativas não necessariamente são, e os
que se recusarão a confessar que as partes do Novo Testamento que não
consideramos normativas deveriam ser. Falo do abismo que já existe entre os que
creem que a salvação reside numa letra ou num espírito, num código ou num caminho,
numa lista fechada de legislações ou na obra cada vez mais exigente e sempre inconclusa do
amor.
Essa, pode
ser necessário repetir, não é uma discussão entre Jesus e Paulo, que eu saiba nunca deixaram de estar de acordo. Reformar é
romper, e se achamos necessário romper é sempre por uma questão de autoridade e
de identidade. Ou seja: de poder.
No final
Paulo parece ter estado certo o tempo todo, e Deus continua usando o método da
insensatez, de dar preferência à solução que os homens consideram mais
improvável. A igreja apostou que as sementes do Novo Testamento que tinham
vocação de brotar para a eternidade nasceriam das alturas da teologia e do
palácio que construímos para manter Jesus no céu, para onde queremos subir mas,
de onde não esperamos que o seu reino venha. As sementes que acabaram brotando
subiram do solo árido da Judéia e da Galileia; desta terra em que o Filho do
Homem que encarnou o Amor caminhou.
Fonte: Texto completo do Paulo Brabo - www.baciadasalmas.com/
Nenhum comentário:
Postar um comentário