sexta-feira, 7 de abril de 2017

Preservando a herança pentecostal

Encantei-me numa das primeiras vezes que visitei uma igreja pentecostal. Fui a um culto de meio de semana na congregação da Assembléia de Deus. Iluminada com uma luz branca, parecia uma pérola incrustada no meio da zona das luzes vermelhas. O prédio pobre e simples ainda despontava como a melhor construção do bairro.

O culto começou com alguns hinos da Harpa Cristã. Como sempre acontece nos cultos pentecostais, lágrimas e explosões de entusiasmo, entrecortavam o hino. Depois, os diversos corais foram chamados. Cantaram as crianças, os jovens e, por último, o coral das mulheres. Não esqueci quando o dirigente daquela congregação cochichou-me que a regente do coral trabalhou como cafetina de uma daquelas casas suspeitas. “A maioria das mulheres de nossa igreja veio da prostituição”, emendou ele.

O coral não conseguiu terminar sua apresentação. Todas as mulheres choravam emocionadas com a letra da musica. Acabaram falando línguas estranhas e louvando a Deus com grande intensidade.
Eu que também passara por uma experiência pentecostal recente, achava-me maravilhado com aquele culto; simples, mas pleno de sinceridade. A igreja de gente extremamente pobre esbanjava riqueza em sua devoção. O ambiente se eletrizava com um fervor espiritual enorme. Percebi que ali nada roubava a dignidade das pessoas, pelo contrário, dava-lhes um sentimento que pertinência a um reino.

Todos se sentiam princesas e príncipes. Para mim aquele ambiente assemelhava-se a uma reunião da igreja primitiva. Aquela noite foi decisiva em me fazer querer caminhar com a igreja pentecostal. Decidi que identificaria meu ministério com aquele povo que vivenciava Deus com tanta singeleza, mesmo à margem do status quo religioso. Aquele coral de mulheres me apaixonou pelo mundo pentecostal.

Depois de tantos anos convivendo entre eles, continuo admirando esse movimento do Espírito que estará completando um século nos primeiros anos deste novo milênio. A evangelização no Brasil deve muito aos pentecostais. Desde que os primeiros missionários suecos aportaram em Belém do Pará, e desde que os primeiros pastores nordestinos migraram para o Rio de Janeiro e São Paulo o crescimento da igreja nacional ganhou novo ímpeto. Somente a Assembléia de Deus chegou a representar sessenta e cinco por cento de todos os evangélicos brasileiros. São poucos os municípios brasileiros em que essa denominação não tenha plantado uma pequena igreja. Todas pobres, todas lideradas por leigos e todas independentes financeiramente.

Infelizmente o mundo pentecostal mudou muito. Embora ainda existam expressões tão bonitas de arrojo, sinceridade e acima de tudo paixão pelo reino de Deus no universo pentecostal, ventos estranhos e preocupantes vêm soprando.

Como todos os movimentos, o pentecostalismo precisou se institucionalizar. Criou estruturas que garantiriam sua permanência. Junto com a institucionalização vieram a política eclesiástica pequena, os títulos e as disputas pelos cargos. Criou-se uma elite religiosa. Desenvolveram-se mecanismos para que não houvesse alternância de poder. Uma gerontocracia instalou-se e perpetuou-se como mandatária das igrejas.

Os filhos dos pentecostais estudaram e ascenderam socialmente. Junto com essa escalada vieram as armadilhas que espreitam os novos ricos. Consumismo, materialismo e a valorização dos bens materiais acima dos espirituais. Assim os pentecostais tornaram-se o ambiente mais fértil para a teologia da confissão positiva e da prosperidade. O neopentecostalismo chegou a ofuscar o legado histórico dos pentecostais clássicos. Os neopentecostais (também chamados de carismáticos nos Estados Unidos e na Europa) foram para a televisão e embora ainda numericamente inferiores, tornaram-se mais visíveis. Hoje, as pessoas confundem os pentecostais com os neopentecostais e nivelam todos por baixo.

Com um crescimento numérico impressionante os pentecostais passaram a ser cortejados pelos políticos tanto de esquerda como de direita. Primeiro, os próprios pentecostais se candidataram a cargos públicos, depois foram convidados a participarem como parceiros chaves em candidaturas de maior peso. Para quem era considerado a escória do protestantismo, tanta atenção acabou transformando-se em novo perigo. Com políticos de toda espécie a tiracolo, esvaziou-se o discurso profético. De repente, já não se podiam denunciar as estruturas satanizadas para não ferir suscetibilidades. Os pentecostais já não se sentiam marginais, mas parte da elite governante (embora ela continue os desprezando-os e ridicularizando-os).

Os antigos pentecostais provinham de comunidades onde havia pouca liberdade para que o Espírito Santo rompesse com as molduras teológicas e litúrgicas. Defendiam o direito de Deus “bagunçar” com os sistemas religiosos humanos. Depois de quase um século, aquilo que era uma “bagunça” divina foi estereotipado e passou a ser o “jeito pentecostal”. Eles tentaram engessar o agir de Deus à sua maneira e novamente o Espírito Santo ficou sem liberdade. Hoje, algumas das mais tradicionais igrejas evangélicas são pentecostais. E pior ainda, o neopentecostalismo tentou gerar artificialmente aquele antigo clima de avivamento espiritual. O resultado é que os cultos do neopentecostalismo estão repletos de práticas bizarras. Em muitos casos percebe-se claramente que são esforços humanos de imitar o agir do Espírito. Ensina-se a falar em línguas, sopram-se sobre as pessoas para que caiam.

Milagres propagandeados quando não houve milagre nenhum. Alastram-se os pregadores que procuram compensar com gritos uma unção que já não se experimenta como outrora.

O mundo evangélico enriqueceu muito desde que Seymour, aquele pregador negro, cego de um olho, liderou os primeiros cultos da Rua Azuza em Los Angeles. Eles não apenas desbravaram muitas frentes missionárias, como também cresceram numericamente e salvaram inúmeras pessoas. Trouxeram de volta a possibilidade de Deus visitar o seu povo com milagres e maravilhas ao contrário do hermetismo da teologia sistemática fundamentalista. Transformaram o culto em festa, romperam com a liturgia enlatada das matrizes missionárias, falaram a língua do povo, porque eram povo. Abriram espaço para as mulheres, para os negros e para os pobres. Cantaram e dançaram, fazendo um barulho espontâneo e feliz ao Deus de suas vidas.

Devemos a eles a insistência de que Deus não obedece às dispensações que os teólogos criaram para Ele. Ensinaram-nos que ele ainda opera milagres, distribui dons e reveste o seu povo com poder para ser testemunha do Reino em todas as nações da terra.

Os dilemas que afetam e alteram o perfil do pentecostalismo devem interessar todo o universo cristão, pois se ele perder o seu vigor, todos empobrecerão e o cristianismo perderá muito de sua riqueza e da possibilidade de dialogar com a cultura. Portanto, precisamos orar para que haja um  novo avivamento entre os pentecostais e chamá-los para o diálogo com outros segmentos evangélicos.  Oxigenados com a diversidade do corpo de Cristo crescerão em sua auto crítica e se manterão saudáveis.

Necessitamos de mais comunidades como aquela que um dia arrancou lágrimas de meus olhos. Naquela igreja apinhada de vidas transformadas pelo poder do Evangelho havia um microcosmo do que toda comunidade evangélica precisa ser. Continuo orando e trabalhando para que ela se multiplique por esse querido Brasil. Esse é o meu ideal.

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