quinta-feira, 22 de julho de 2021

Uma análise sobre a crise espiritual da igreja evangélica nos Estados Unidos (Parte 2)

 O que explica essa queda abrupta, vertiginosa e contínua da igreja evangélica nos Estados Unidos nos últimos 30 anos, evidenciada pelos dados que apresentamos no meu último artigo?

 
Creio que há um consenso que resume tudo: os Estados Unidos estão em decadência moral e espiritual, e isso não é de hoje. Há quem acredite que por volta de 1950 a semente dessa decadência começou a ser plantada, já que várias vozes no meio evangélico se levantaram nesse período denunciando tendências perigosas que estavam começando a se formar naquela época no meio evangélico. Só a título de amostra, podemos lembrar dos artigos-alertas de A. W. Tozer (1897-1963) nesse período, publicados posteriormente em livro, como é o caso de The Root of the Righteous, de 1955; e da obra Why Revival Tarries, de Leonard Ravenhill (1907-1994), publicada em 1959 (Essas obras foram publicadas décadas depois em nosso país sob os títulos A Raiz dos Justos e Por que Tarda o Pleno Avivamento?, respectivamente). Outros exemplos poderiam ser citados de obras que faziam sinalizações nesse sentido, mas o conteúdo desses dois títulos – que se tornariam clássicos – já é suficientemente emblemático. Não obstante essas preocupações, a igreja evangélica nos EUA continuava muito forte e crescendo.
 
É importante frisar aqui que quando falo de “tendências perigosas” e “crise espiritual” não estou falando especificamente da existência de movimentos heréticos no meio evangélico norte-americano, pois estes sempre existiram e, apesar deles, a igreja evangélica nos EUA continuava crescendo na maior parte do século 20. Estou falando de decadência moral e espiritual de forma geral. Os movimentos heréticos, claro, contribuem para isso, mas fato é que essa decadência pode existir independente da existência ou não de fortes movimentos heréticos.
 
A Igreja Primitiva, por exemplo, sofreu com fortes heresias durante os primeiros séculos da sua existência, as quais trouxeram muitos prejuízos para ela naqueles dias, sem dúvida alguma; mas, esses movimentos heréticos não foram – assim como a perseguição secular também não foi – estorvo suficiente para paralisar o crescimento da igreja nesse período, pois a igreja naqueles tempos, em sua esmagadora maioria, não perdera ainda a sua integridade moral e espiritual. Já nos séculos seguintes, a corrupção moral e espiritual aumenta, e com ela a paganização da igreja; e se a igreja ainda continua crescendo no período medieval, é, em algumas circunstâncias, devido à graça de Deus e aos esforços de alguns por Ele instrumentalizados de alguma forma; e em outras situações, a um crescimento que é um verdadeiro inchaço, com muitos cristãos meramente nominais ou pagãos cristianizados às custas da paganização do cristianismo oficial.
 
O problema maior da igreja evangélica dos Estados Unidos de algumas décadas para cá, como apontavam Tozer e Ravenhill, é sobretudo as tendências negativas sutis de ordem espiritual que muitas vezes passavam despercebidas, invadindo-as sem qualquer vigilância atenta, e que cobrariam um alto preço mais tarde.
 
Nos anos de 1950 a 1970, não havia ainda uma crise espiritual generalizada instalada nos EUA, mas apenas tendências preocupantes sinalizadas aqui e acolá que ainda não comprometiam o todo. A maioria da igreja estava em vitalidade moral e espiritual. Entretanto, no final dos anos de 1980, a coisa aparentemente começou a degringolar. Ao que parece, 30 anos depois, o que era uma tendência cresceu e começava a produzir os seus frutos.
 
O final dos anos de 1980 seriam marcados pelos maiores escândalos do meio evangélico norte-americano desde a fundação do país, os quais só seriam superados décadas depois. Essa é a época de obras como Set the Trumpet to thy Mouth (1985), do falecido David Wilkerson (publicado no Brasil como Toca a Trombeta em Sião, CPAD); de Integrity Crisis (1988), do falecido Warren Wiersbe (publicado no Brasil como Crise de Integridade, Editora Vida); e Integrity (1993), do também falecido Richard Dortch (publicado no Brasil como Orgulho Fatal, CPAD).
 
Então, como se essa onda de escândalos dos anos 80 tivesse sido um presságio, vemos, de 1990 em diante, a decadência começando de fato, evidenciada eloquentemente pelos números.
 
Quando digo “decadência”, obviamente não estou afirmando que todas e cada uma das igrejas daquele país estão em decadência. Há muitas igrejas ali que estão bem, graças a Deus. Falo do panorama geral do protestantismo nos EUA, da igreja evangélica como um todo naquele país. E este não é um diagnóstico a partir de uma coleção de fatos estarrecedores, porque às vezes fatos estarrecedores são apenas fatos isolados, não representando o estado majoritário de uma comunidade, logo não podem servir sempre de referência. Aludo a fatos estarrecedores também, mas corroborados por números. Os números estão aí para provar que, mais do que uma coleção imensa de fatos tristes nos últimos anos, há uma decadência em ritmo vertiginoso.
 
De 1990 para cá, como vimos no último artigo, os evangélicos despencaram percentual e numericamente. Desde 2012 – ano em que, pela primeira vez na história, os evangélicos passaram a não ser mais maioria no país, caindo para 48% da população, eles passaram a ser vistos como não mais determinantes nas eleições daquele país. Lembremos que 2012 foi o ano da reeleição de Obama, o qual foi reconduzido ao cargo não obstante a maioria dos evangélicos não ter votado pela sua reeleição. A própria imprensa secular nos EUA celebrou esse fato na época. Aliás, o próprio Obama, quando presidente, diria que os EUA “não é mais uma nação cristã”, mas, sim, uma nação cristã, muçulmana, ateia, budista etc.
 
A queda dos evangélicos, celebrada pela imprensa liberal em 2012, era prevista. Os especialistas sabiam que era uma questão de tempo. Afinal, como vimos, de 1990 a 2004, em apenas 14 anos, os evangélicos já haviam despencado de 60% para 53%; e de 2004 a 2008, em apenas 4 anos, caíram de 53% para 50%. Logo, quatro anos depois, cair para 48% não era nada inesperado. Era previsível. E a queda avançou, chegando agora, 9 anos depois da perda da hegemonia, para 40%.
 
Não só a imprensa acompanhava a evolução dessa queda nesse período, mas a própria igreja evangélica norte-americana estava ciente dela e reagiu nas últimas décadas de formas distintas diante do problema. Alguns acharam que, uma vez que só as igrejas neopentecostais cresciam muito (embora esse crescimento fosse artificial, atraindo mais crentes de outras igrejas do que ganhando pessoas não-crentes para Cristo), seria melhor aderir à teologia da prosperidade e à confissão positiva, enquanto outra parte passou a atribuir a queda dos evangélicos exclusivamente a esses movimentos que envergonhavam o evangelho puro, de maneira que a solução dos problemas seria não só combater essas heresias, mas também empreender uma volta radical ao que seria “A ortodoxia protestante original”, aquela que fundou a América. Isso gerou, entre outras coisas, movimentos como o neocalvinismo, o neopuritanismo etc, que seriam a solução, pois seriam “A volta ao evangelho”.
 
Por outro lado, os dados do Instituto Barna mostravam a influência crescente dos valores da pós-modernidade sobre os evangélicos nos EUA nas últimas décadas. Logo, o neopentecostalismo não era mais o único problema. Havia também a pós-modernidade, que muitos vão considerar até como sendo “O” problema de fato. Sim, a influência da pós-modernidade é um problema, assim como as heresias neopentecostais são um problema também, mas os problemas da igreja evangélica nos EUA não se resumiam a esses. Tanto é que, não demorou muito, outras reações surgiram para tentar explicar e combater a queda da igreja evangélica no país, pois essas duas reações não eram suficientes.
 
Enquanto isso, em outra vertente, alguns evangélicos, ignorando as discussões teológicas, resolveram focar, de forma mais pragmatista, em novos métodos de crescimento de igreja: para uns, a saída seria o sistema de igreja em células, baseado no sucesso desse sistema de organização eclesiástica na Coreia do Sul; para outros, seria o modelo da “igreja sensível aos que buscam”, de Willow Creek, dentre tantos outros métodos concebidos. Muitas igrejas aderiram a esses modelos, que fizeram elas até crescerem, principalmente atraindo crentes afastados de outras igrejas; entretanto, décadas depois, viu-se que isso não serviu para alterar o panorama geral das igrejas no país, além do que alguns desses modelos adotados foram vistos como fundamentalmente falhos – caso de Willow Creek, cujo líder admitiu há pouco mais de dez anos que, não obstante a sua igreja ter crescido muito sob o modelo utilizado, ela gerou uma igreja com membros espiritualmente superficiais.
 
Paralelamente a isso, na virada do século 20 para o século 21, alguns pastores e teólogos norte-americanos, observando as mudanças na sociedade na era pós-moderna e entendendo que o problema do gráfico descendente das igrejas no país era não estarem atentas e sintonizadas a essas mudanças, passaram a defender que, em vez de lutar contra a pós-modernidade, a igreja evangélica nos EUA deveria se adaptar a ela para sobreviver como igreja. Assim surgiu o Movimento de Igrejas Emergentes. Bem, a verdade é que, como nos outros casos, com o passar do tempo, esse movimento não só não resolveu o problema da queda da igreja evangélica como grande parte dessas igrejas acabaram se tornando mais parecidas com o mundo do que com o evangelho.
 
Ainda dentro dessa linha, porém tentando fugir do que se tornaram algumas igrejas e líderes do Movimento de Igreja Emergente, outros irmãos passaram a defender uma “reinvenção” do evangelicalismo como saída, já que a igreja não estaria mais conseguindo se comunicar com o mundo, mais propriamente com este novo mundo. Não era uma mudança na essência do evangelho, mas apenas na embalagem e na linguagem. Era preciso, dizia-se, um evangelicalismo “mais humilde” e mais despojado, menos formal; outros dirão também que seria necessário um evangelicalismo mais voltado ao social; outros ainda falarão de um evangelicalismo “mais de centro” (seja lá o que isso signifique – as definições do que isso seria são as mais variadas) ou de “revisar o centro” teologicamente falando, revisitando o que há de bom de certas correntes históricas do protestantismo e fazendo uma mistura disso. Falou-se também de um “conservadorismo mais compassivo” ou de “uma ortodoxia mais generosa”, motes usados originalmente pelos fundadores do Movimento de Igrejas Emergentes e que agora haviam sido reciclados. Enfim, o evangelicalismo deveria mudar, deveria ter uma nova face. Todas essas discussões acabaram influenciando a própria estética do culto; a forma de apresentação e de vestimenta dos pastores; a estética dos templos; os estilos musicais; a elaboração de uma nova linguagem supostamente mais adequada aos novos tempos, mas tendo o cuidado para não se perder a essência do evangelho; os estilos musicais etc.
 
Não necessariamente todas essas mudanças são ruins. O problema, contudo, é que todas elas são erros de premissa, sequer tocando no cerne do problema. Tanto é que nada disso adiantou: os evangélicos continuaram e continuam caindo nos EUA, não obstante todas essas mudanças aplicadas.
 
Também paralelamente a isso tudo, muitos cristãos passaram a se preocupar com a necessidade de os cristãos se envolverem mais com as questões culturais e políticas do nosso tempo, já que a influência cristã na cultura, na academia e na política havia caído absurdamente nos EUA nas últimas décadas, com o avanço do progressismo, do secularismo e até do marxismo em plagas norte-americanas. Veio, então, nos anos de 1990, o movimento de cosmovisão cristã, inspirado nos escritos do falecido Francis Schaeffer. Seus seguidores começaram a desenvolvê-lo no início dos anos de 1990, mas ele cresceu de fato a partir da primeira década dos anos 2000 (Charles Colson, Nancy Pearcey etc). O movimento tem suas virtudes e importância. Porém, esse engajamento foi visto por alguns como “A Solução”, o que não é o caso. O problema da queda dos evangélicos e do Cristianismo nos EUA não será resolvido apenas por uma agenda de guerra cultural. Ela tem seu valor, mas não é tudo.
 
Na esteira desse engajamento cultural, houve ainda a ascensão da apologética cristã, com a valorização maior de nomes que já militavam havia um bom tempo nessa área, como Norman Geisler, William Lane Craig, Hank Hannegraff, Ravi Zacharias etc. Mas, mesmo muitos desses fazendo um grande trabalho de base e tendo excelente desempenho em debates públicos contra estrelas do ateísmo ou do liberalismo/progressismo, os evangélicos continuaram caindo nos EUA. E mais uma vez, não porque esse trabalho não seja importante. Longe disso! Apenas não é o suficiente e não toca no cerne da coisa. Tanto é que Ravi Zacharias teve um final triste e Hank Hannegraff terminou abandonando o protestantismo e se tornando membro da Igreja Ortodoxa. Porque o problema é mais fundo.
 
Não é que o trabalho na área cultural não deva ser feito, nem que o labor apologético não seja necessário, nem muito menos que não tenha sua importância se preocupar em levar o evangelho sabendo se comunicar bem com esta geração sem abrir mão da ortodoxia bíblica. A questão é, na verdade - o problema é, sobretudo -, de ordem espiritual, no sentido de qualidade da vida espiritual da maioria dos crentes norte-americanos.
 
Muitos dos problemas enfrentados pelos irmãos norte-americanos (heresias neopentecostais, influência da pós-modernidade, guerra cultural, necessidade apologética) são conhecidos também pelos irmãos nas Américas Central e do Sul, na África e na Ásia (aliás, todas essas ondas nos EUA influenciaram também as igrejas evangélicas nas outras regiões do mundo), mas nestas regiões, apesar de todos esses problemas, as igrejas evangélicas – no panorama geral – têm crescido, enquanto nos EUA e na Europa, com os mesmos problemas, não. Por quê? Talvez porque, ao que tudo indica, apesar dos muitos problemas que também temos, há ainda, na média geral, muita vitalidade espiritual nessas outras regiões, graças a Deus.
 
Com isso, claro, não estou dizendo que não há igrejas problemáticas nas outras regiões do mundo onde agora está havendo crescimento, nem que as igrejas nos EUA ou mesmo na Europa estão todas e cada uma delas em decadência, mas estou dizendo – volto a frisar – que o panorama geral nessas regiões de que falei é de crescimento apesar dos problemas, enquanto nos EUA, como na Europa, é de decadência, e que isso, ao que tudo indica, tem a ver com uma provável média geral de vitalidade espiritual maior nas igrejas nessas regiões do que nos EUA e Europa, apesar de toda riqueza, história e cultura das igrejas nos EUA e na Europa.
 
Ou seja, a igreja nos EUA e na Europa precisam de um avivamento. Sim, aqui há igrejas que precisam de um avivamento também, assim como na África e na Ásia, mas não há sombra de dúvida de que na Europa e nos EUA a situação é muito mais premente.
 
Aumento do conhecimento bíblico e doutrinário, aprimoramento apologético e zelo na ortodoxia, bem como a preocupação com a comunicabilidade e com o uso de novas tecnologias na vida da igreja, são importantíssimos, mas nada disso é suficiente se não há vitalidade espiritual. Tudo isso pode produzir, em muitos casos, até aparência de vitalidade, mas só aparência.
 
Hank Hannegraff abandona o protestantismo e se torna cristão ortodoxo. Ted Haggard, até então um dos evangélicos mais influentes do país e presidente da Associação Nacional dos Evangélicos nos EUA, cai em um terrível escândalo. Há o caso do falecido Ravi Zacharias. Há também a Liberty University processando seu ex-presidente Jerry Fawell Jr. em 10 milhões de dólares por escândalo sexual. Paul Maxwell, doutor em Teologia e professor de Filosofia do Instituto Bíblico Moody, mais conhecido como um dos principais articulistas e autores do ministério Desiring God, do pastor John Piper, anunciou em 9 de abril, em suas redes sociais, que não é mais cristão e que está “feliz com isso”. A própria igreja de Piper, a Igreja Batista de Bethlehem, em Minneapolis, desde que ele se aposentou do pastorado há 9 anos, já está no quarto pastor, após quatro renúnicas seguidas em quatro meses, todos renunciando após acusarem o presbitério da igreja de exercer "uma liderança tóxica e abusiva" (Segundo se fala, o presbitério não aceitou que esses pastores aplicassem na igreja a Teoria Crítica da Raça, o igualitarismo ministerial e uma maior flexibilização na área do divórcio). O pastor Joshua Harris, que foi uma referência para muitos jovens cristãos nos EUA nos anos 2000, como líder de um movimento de pureza sexual, com abstinência até o casamento, resolveu, em 2010, preocupado por estar sendo taxado de “fundamentalista”, “sexista” e “radical” por suas posições, dizer que defendia uma “ortodoxia humilde”; depois, em 2016 e 2017, pediu desculpas sobre alguns de seus posicionamentos nessa área; em 2018, chegou ao ponto de tirar de circulação a sua principal obra tratando sobre namoro, com mais de 1,2 milhão de exemplares vendidos; e em 2019, passou por uma crise no casamento, se divorciou e anunciou que não era mais cristão, decisão mantida até hoje.
 
Poderia citar muitos outros casos recentes, enfileirar caso após caso dos últimos anos, mas vamos parar por aqui. Voltemo-nos agora para o ápice desse quadro todo, o principal sintoma dessa queda vertiginosa, que é a atual divisão visceral vivida pela igreja evangélica nos EUA. Nos Estados Unidos, o país e a igreja estão divididos. E é sobre isso que trataremos no próximo e último artigo desta série.

Fonte: Silas Daniel - http://www.cpadnews.com.br/blog/silasdaniel/

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